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“Esse gasto exagerado com a dívida não é um mero acaso”

Conversamos com a auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida”, Maria Lucia Fattorelli, sobre o déficit no orçamento público e a penalização dos trabalhadores.

 

O que realmente compromete as receitas públicas do país?

Os gastos financeiros são os que mais comprometem as contas públicas, conforme evidenciado no gráfico a seguir, que demonstra a destinação dos recursos dos Orçamento Geral da União executado em 2016:

 

Esse gasto exagerado com a dívida não é um mero acaso, mas é um dos sustentáculos do distorcido modelo econômico aplicado no país, voltado para a concentração de renda e riqueza em seus principais pilares:

  • modelo tributário injusto e regressivo;
  • política monetária suicida; e
  • privilégio do Sistema da Dívida.

A fim de desmontar esse cenário, precisaremos modificar o modelo tributário para que se transforme em mecanismo de justiça fiscal e distribuição de renda; alterar a política monetária para que atue em favor dos interesses do país e do povo, e não apenas do setor financeiro; e enfrentar o Sistema da Dívida por meio de completa auditoria, interrompendo esse processo de sangria de recursos e submissão aos interesses do mercado financeiro.

 

A senhora consegue enxergar alguma saída para a situação econômica do país, inclusive devido aos gastos exorbitantes com corrupção e uso da máquina pública para benefícios pessoais?

Evidentemente que sim. Recurso é algo que não falta no Brasil. O Brasil é a 9a maior economia mundial e possui imensas riquezas e potencialidades. Possuímos a maior reserva de nióbio do mundo; dezenas de minerais estratégicos; terras raras; terceira maior reserva de petróleo; maior reserva de água potável; maior área agricultável e recordes de safra; maior diversidade biológica; extensão territorial continental; riqueza humana e cultural; clima favorável; imenso potencial energético, industrial e comercial.

Possuímos também riquezas financeiras: Reservas Internacionais de 375 bilhões de dólares, além de fortunas esterilizadas no Banco Central (superior a R$ 1,1 Trilhão) e no caixa do Tesouro Nacional (R$ 480 bilhões em 2015 e R$ 268 bilhões em 2016), para formar “colchão de liquidez” e garantir o pagamento de juros.

Adicionalmente, temos enorme potencial de arrecadação tributária por cobrar e créditos de Dívida Ecológica histórica que ainda não foram devidamente mensurados.

Com essa riqueza toda, era para estarmos em patamar de desenvolvimento socioeconômico invejável há muito tempo.

Mas para que os recursos sirvam aos interesses do país e de toda a sociedade, é urgente aplicar outro modelo econômico, sem os distorcidos pilares e máscaras que sustentam o atual cenário de escassez.

Essa mudança só será possível se for construída a partir da base da sociedade, com ampla participação e envolvimento popular, de forma consciente e cidadã.

 

O que falta para ser instituída uma auditoria das contas públicas brasileiras e como ela funcionaria?

Falta vontade política. A auditoria da dívida está prevista na Constituição Federal, porém, nunca foi realizada. Por três vezes, conseguimos aprovar, no Congresso Nacional, a proposta de uma auditoria da dívida no âmbito do poder executivo, com participação social, mas tais propostas foram vetadas, respectivamente, por Dilma (PPA-2016/2019) e Temer (LDO 2017 e 2018).

A auditoria se fundamenta em dados e documentos oficiais e deveria ser rotina. Aliás, a sociedade está exigindo isso da classe política. O que pode justificar não fazer uma auditoria das nossas contas? Faríamos isso na nossa casa e em qualquer empresa que quiséssemos que desse bons frutos.

A auditoria irá garantir a transparência dos registros e negociações que envolvem a chamada dívida pública e, aliás, a transparência é um preceito constitucional que deve reger todo ato público. É uma questão de respeito com quem está pagando essa elevada conta.

Comissões do próprio Congresso Nacional já mostraram que a dívida (tanto interna como externa; federal, estadual e municipal) é repleta de indícios de ilegalidade, ilegitimidade e até fraudes, tais como a suspeita de renúncia à prescrição, diversas transformações de passivos privados em dívidas públicas, além de mecanismos financeiros que geram dívida sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade, a exemplo das escandalosas operações de swap cambial e operações compromissadas.

É um verdadeiro absurdo continuarmos pagando “dívidas” fraudulentas às custas de tantas vidas e do atraso socioeconômico do nosso país. Sequer sabemos quem são os beneficiários de quase a metade do orçamento federal, pois todas as operações da dívida são sigilosas. A realização da auditoria é urgente.

O setor financeiro, que está dominando o mundo todo, faz um verdadeiro terrorismo contra a auditoria, alegando que sua realização provocaria consequências drásticas. Ora, isso não tem o menor sentido. Ademais, se estivesse tudo correto em relação à chamada dívida pública, por que não realizar a auditoria? É evidente que temem a revelação das irregularidade e fraudes que têm garantido a transferência de imensos volumes de recursos ao setor financeiro.

Estatísticas do próprio Banco Central demonstram que em 2015, apesar da desindustrialização, da queda no comércio, do desemprego e da retração do PIB em quase 4%, o lucro dos bancos foi 20% superior ao de 2014, e teria sido 300% maior não fossem as exageradas provisões feitas pelos bancos, que atingiram R$ 183,7 bilhões, procedimento que ainda por cima reduz seus lucros tributáveis.

A EC 95 vai aumentar ainda mais o privilégio dos bancos, pois ela visa aumentar a gastança financeira com a chamada dívida pública que beneficia principalmente o setor financeiro.

O Equador realizou auditoria integral de sua dívida, com participação social, e obteve grande redução na dívida. O Presidente da República criou uma comissão para realizar essa auditoria e concedeu poderes para os membros nomeados requerer quaisquer informações, junto a todos os órgãos, garantindo respaldo político e legal para a atuação da equipe, o que possibilitou o acesso às provas necessárias para documentar as diversas ilegitimidades da dívida.

 

A Previdência tem sido apontada como vilã do déficit das contas públicas. Há fundamentação neste ataque?

O histórico rombo das contas públicas está no gasto financeiro com a chamada dívida pública, como mencionei anteriormente.

O propagandeado “déficit da previdência” é uma farsa. A conta feita para mostrar o “déficit” é uma conta distorcida.

A Previdência Social é um dos tripés da Seguridade Social, juntamente com a Saúde e Assistência Social, e foi uma das principais conquistas da Constituição Federal de 1988.

Ao mesmo tempo em que os constituintes criaram esse importante tripé, estabeleceram também as fontes de receitas – as contribuições sociais – que são pagas por todos os setores, ou seja:

  • empresas contribuem sobre o lucro (CSLL) e pagam a parte patronal da contribuição sobre a folha de salários;
  • trabalhadores contribuem sobre seus salários;
  • e toda a sociedade contribui por meio da contribuição embutida em tudo o que adquire (Cofins).
  • Além dessas, há contribuições sobre importação de bens e serviços, receitas provenientes de concursos e prognósticos e outras previstas em lei.

A seguridade social tem sido altamente superavitária. Nos últimos 6 anos, a sobra de recursos na Seguridade Social foi de R$ 55,1 bilhões em 2010; R$ 76,1 bilhões em 2011; R$ 83,3 bilhões em 2012; R$ 78,2 bilhões em 2013; R$ 53,9 bilhões em 2014, e R$11,2 bilhões em 2015, conforme dados oficiais segregados pela ANFIP (www.anfip.org.br).

O reiterado superávit da Seguridade Social deveria estar fomentando debates sobre a melhoria da Previdência, da Assistência e da Saúde dos brasileiros. Isso não ocorre devido à prioridade para o pagamento da dívida mediante a Desvinculação das Receitas (que foi aumentada para 30% em 2016) desses setores para o cumprimento das metas de superávit primário, ou seja, a reserva de recursos para o pagamento da dívida pública. O falacioso déficit é encontrado quando se compara apenas a arrecadação da folha (deixando de lado todas as demais contribuições sociais) com a totalidade dos gastos com a Previdência, fazendo-se um desmembramento que não tem amparo na Constituição e nem possui lógica, pois são os trabalhadores os maiores contribuintes da COFINS.

A simples existência do mecanismo da DRU já comprova que sobram recursos na Seguridade Social. Se faltasse recurso, não haveria nada que desvincular, evidentemente.

 

Mesmo diante de todo prejuízo nas relações de emprego, qual a razão para o governo priorizar as reformas trabalhista e previdenciária?

Diversas medidas que têm sido adotadas no Brasil não possuem lógica alguma, sob o ponto de vista de pessoas como nós, que desejamos o desenvolvimento socioeconômico do nosso país.

As contrarreformas trabalhista e previdenciária constituem uma verdadeira insanidade e representam retrocesso social brutal. Trarão prejuízos para as pessoas e para o país.

Da mesma forma, não tem o menor sentido – sob o nosso ponto de vista – a entrega de imensa área do território da Amazônia para a mineração privada estrangeira; as absurdas privatizações de empresas estratégicas como a Casa da Moeda e a Eletrobrás (e ainda por cima, por preço vil); a autorização para impressão de nossa moeda no exterior, afrontando a Constituição; a Emenda Constitucional 95/2016, que irá manter sob o teto rebaixado de 2016 todas as despesas primárias durante 20 anos, prejudicando universidades, toda a estrutura do Estado e todos os direitos sociais, porém, deixando livres e sem qualquer controle os gastos financeiros com a dívida e com novos mecanismos fraudulentos que estão sendo criados Brasil afora (Ver http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2017/08/PLS-204-2016-.pdf ).

Só compreendemos esse conjunto de medidas nocivas ao país quando constatamos que todas elas fazem parte de um modelo econômico de exploração, no qual não há espaço para um Brasil desenvolvido, nem a possibilidade de amplo acesso a direitos sociais.

Até quando vamos permitir isso?

Já é mais que hora de arregaçarmos as mangas, disseminar o conhecimento sobre as nossas imensas possibilidades e mobilizar a sociedade para construir o novo modelo de desenvolvimento socioeconômico; rasgar o cenário de escassez e passar a viver a realidade de abundância, garantindo vida digna para todas as pessoas.

 

Por que os argumentos que penalizam os trabalhadores brasileiros não recaem da mesma maneira a tributações de grandes empresas e fortunas do país?

Isso não é obra do acaso. O modelo tributário injusto e regressivo é uma das hastes que sustentam o modelo econômico distorcido que é aplicado ao Brasil.

O modelo tributário aqui aplicado possui diversas distorções e mantém uma série de privilégios, como a ausência de tributação sobre distribuição de lucros, remessas para o exterior, grandes fortunas, exportações, aplicações financeiras feitas por estrangeiros, entre outras renúncias fiscais, além de baixa tributação sobre lucros exorbitantes, heranças, latifúndios, rentistas e bens supérfluos de luxo.

Adicionalmente, normas garantem benesses na apuração do lucro de grandes bancos e corporações por meio da dedução de juros sobre o capital próprio; uma tremenda máscara que aumenta ainda mais os lucros dos mais abastados, que possuem capital próprio. Outras regras garantem a desoneração, livrando grandes contribuintes de suas obrigações tributárias. Outras ainda extinguem a punibilidade mediante o pagamento ou mero parcelamento, exonerando implicações penais e gerando a sensação de impunidade na esfera tributária. Centenas de bilhões de reais deixam de ser arrecadados de quem poderia pagar tributos.

Esse conjunto de aberrações aliado à insuficiência de investimentos na administração tributária, dificultando o combate à sonegação, tornam nosso modelo um dos mais injustos e regressivos do planeta.

A fim de manter a população desmobilizada, os políticos financiados pelo setor que lucra com esse modelo defendem seus interesses e ainda culpam a população, colocando sob os holofotes da grande mídia os gastos sociais (por exemplo, a Previdência, servidores públicos, seguro-desemprego etc.), como se fossem os causadores da crise.

Porém, o que provocou a crise no Brasil foi justamente esse modelo distorcido, especialmente a política monetária suicida. E essa crise fabricada está justificando toda essa entrega de patrimônio e contrarreformas. É urgente que o povo acorde, enxergue isso e exija a mudança desse modelo.

 

A senhora mencionou que a crise foi fabricada. Poderia explicar melhor essa questão?

Claro. Recomento a leitura do artigo recém publicado: O que provocou a crise atual.

Disponível em http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2017/06/19/o-que-provocou-crise-economica-atual/

 

As opiniões expressas na entrevista não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.

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