Por Guilherme Costa Delgado
Um conhecido teólogo e economista brasileiro, de ascendência coreana – Jung Mo Sung -, publicou no segundo semestre de 2018 um livro muito instigante, que nos ajuda a desvendar o sentido deste artigo. O título do livro é: “Idolatria do Dinheiro e Direitos Humanos – uma crítica teológica ao novo mito do capitalismo”.
A tese central deste livro, simplificando para situá-lo nas Perspectivas da Economia para 2019, é a mudança de paradigma do sistema econômico global – do ‘mito do desenvolvimento econômico universal’ ao ‘mito do mercado livre global’. As narrativas e práticas calcadas nessas versões mitológicas, segundo o autor, estiveram em permanente disputa no período Pós-Guerra Mundial, com clara opção do desenvolvimentismo nos trinta anos dourados das décadas 1950-1980’, de relativo abandono nos primeiros experimentos do neoliberalismo ao estilo Thatcher/Reagan. Mas a partir da crise financeira norte-americana de 2008, o sistema financeiro mundial opera, de maneira sistemática, na negação do primeiro mito e sacralização do segundo.
As ideologias subjacentes ao mito do mercado livre, sem quaisquer regulações restritivas, contêm negação radical do chamado Estado Social, porque nega direito social e seus requerimentos de obrigações sociais dos mais ricos para com os mais pobres, uma espécie de pedra angular do Templo, restaurada e naturalizada da desigualdade.
E a partir deste Templo recuperam-se velhas teologias superadas já no judaísmo profético e principalmente a partir de Jesus Cristo – teologias da Prosperidade e da Retribuição -, que ao invés da justiça e da misericórdia para com as vítimas da desigualdade social, incriminam os pobres pela própria sorte e elegem a riqueza como desígnio absoluto de um deus impiedoso e indiferente para com a proteção social dos seres humanos.
A tese acima exposta não é uma vulgar formulação de grupos pentecostais, à revelia dos verdadeiros evangélicos. Mas uma formulação vencida à época da prevalência do keynesianismo, com assinaturas de três economistas neoclássicos – Ludwig Von Misses, F. A. Von Hayek e Milton Friedman, que ora viraram espécie de oráculos da chamada “equipe econômica” do novo governo e que já o eram do governo Temer.
Mas o leitor pode pertinentemente fazer a pergunta – o que tem a ver essa mistura de teoria econômica com teologia idolátrica acima exposta, com as Perspectivas Econômicas para 2019?
Vamos tentar responder esta questão por partes.
1) herança de política econômica e social executada no triênio 2016-2018, precedida pelo ensaio de 2015 do ministro Levy, contém duras restrições à perspectiva do crescimento econômico com ligação ao Estado Social. Ao lado de várias reformas na linha da liberalização dos mercados, principalmente do trabalho e dos bens da natureza (terra, minas, águas e campos petroleiros), sob completa propriedade e gestão do sistema financeiro.
2) Há uma desmontagem tácita do sistema de direitos sociais há já vários anos, que se torna explícita a partir da Emenda Constitucional 95/2016 (teto dos gastos primários por 20 anos), operante de forma restritiva nos Orçamentos de 2017, 2018 e 2019.
3) O mercado de trabalho constrangeu-se de forma radical a partir de 2015 pelo desemprego involuntário, pelo desalento (pessoas que desistem de procurar emprego) e pela informalidade, regredindo em quatro anos aos padrões do início da década.
Diante deste quadro conjuntural-estrutural, qualquer horizonte prospectivo que se venha a propor contém necessariamente expectativas do vir a ser, impregnadas de valores sobre o futuro imediato (2019), supostamente afetado por ação política nova.
Mas é aqui que reside o perigo! Alguns dos principais formuladores de política econômica do novo governo são discípulos ostensivos do ‘mito do mercado livre’, a exemplo do ministro da Fazenda Paulo Guedes e também do senador eleito Flávio Bolsonaro, que se jacta de formação econômica obtida em MBA de uma Fundação L.V. Misses. E o próprio presidente eleito tem feito declarações e nomeações de sua equipe de ministros e auxiliares diretos, na linha da radicalização dos mercados de trabalho, terra e dinheiro desregulados.
Por outro lado, os quatro anos de liberalização continuada, na linha da ‘idolatria do dinheiro’, como enunciado no citado livro, radicalizada no governo Temer, não conduziram a qualquer projeto econômico social sustentável, seja em termos de emprego, crescimento, endividamento, sustentabilidade ambiental e indicadores sociais de condições de vida. Ao contrário, pioraram sensivelmente todos esses indicadores. Disso há já disponível fonte empírica comparativa, que me dispenso aqui de apresentá-la.
O aprofundamento da experiência do mito do mercado livre é uma espécie de voo cego no rumo do aprofundamento da crise social, porque não há solução à crise social pelo mercado desregulado. A experiência histórica do capitalismo assim nos ensina.
Na realidade, 2019 será tempo de aprofundamento de contradições. O que resultará daí não se resolve com mais violência. Mas se o projeto de concertação e coesão, incluindo os brasileiros mais sacrificados pela crise, não se inclui no projeto político do novo governo, temos a ingovernabilidade como resultante. Pequenos sinais de recuperação econômica, ilusões de prosperidade logo ‘ali na esquina’ serão brandidos com grande leviandade como indicadores dos novos rumos do novo mito.
Mas a realidade da economia política da desigualdade estrutural, enquanto não enfrentada do ponto de vista de uma ética social reconhecível, clama por luta política e social para mudança de rumos, que nos parece ser a verdadeira perspectiva brasileira para 2019.
Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Publicado originalmente no Correio da Cidadania.