O Ministério da Economia autorizou que os motoristas de aplicativo, como Uber, se formalizem por meio do MEI (microeemprendedor individual), e um dos membros da equipe econômica classificou esse tipo de trabalhador como “empresário dele mesmo”. Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que os motoristas que prestam serviço por meio da Uber não têm vínculo trabalhista com ela.
Para o sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o empreendedorismo é um “mito”, que se fortalece em meio ao alto desemprego, ao enfraquecimento das políticas sociais do Estado e às novas tecnologias. Ele lançou recentemente o livro “Riqueza e miséria do trabalho no Brasil v. IV” (Boitempo), coletânea de artigos de intelectuais, que analisa as novas relações de trabalho.
“O empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos. E, como essas novas modalidades de trabalho são deprimentes, a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença”, afirmou, em entrevista por telefone ao UOL. Veja abaixo os principais trechos da conversa.
O livro discute novas formas de trabalho e sua reorganização na atualidade, com o surgimento de novas tecnologias. Qual é a análise que faz?
Nós sempre recusamos a ideia de que a classe trabalhadora está desaparecendo. Há um processo muito profundo de mutações, claro, desaparecimento de vários ramos e setores. Mas há, ao mesmo tempo, uma expansão trágica de um mosaico de trabalhos: os intermitentes, os flexíveis, os temporários, os informais, que hoje se expandem nos serviços.
Na China, nas últimas décadas, nós tivemos uma enorme expansão do proletariado industrial, além de serviços, que decorre da retração dos trabalhadores rurais no país. Ao mesmo tempo, na Índia e em outros países asiáticos, nós temos uma enorme expansão do trabalho industrial. Na Europa e nos EUA, há expansão do setor de serviços.
E essa expansão se deu paralelamente a uma retração muito grande, não só do trabalho rural, mas do industrial. Isso permitiu que muitos falassem, equivocadamente, em “fim do trabalho”.
Criou-se um trabalho digital altamente qualificado, da indústria do software, por exemplo. Mas também os intermitentes, que a reforma trabalhista no Brasil, em 2017, regulamentou, deu legalidade. Ele se expande em uma infinitude de atividades. Intermitente é aquele em que o trabalhador recebe quando trabalha e, se não trabalha, não recebe. Isso é profundamente nefasto.
Uma das experiências recentes nessa modalidade se deu na Inglaterra, com o contrato de zero hora. Médicos, advogados, trabalhadores domésticos, jardineiros, motoristas, que se conectam com uma dada plataforma, e quando trabalham recebem, quando não trabalham, não recebem. Nessa modalidade, não há obrigação nem de serem chamados para o trabalho, nem de aceitarem.
Isso é diferente da chamada “uberização” do trabalho, na qual trabalhadores prestam serviços para uma grande empresa. Esses trabalhadores, uma vez conectados, não podem recusar chamadas. Se eles recusam algumas e não justificam devidamente, são simplesmente cortados desta relação.
É esse mosaico de trabalhos que nós tentamos apresentar no nosso livro.
Como o empreendedorismo surge nesse contexto e por que o chama de “mito”?
Essa proposta, digamos, de “empresariamento” da nossa vida, só existe por uma conjugação de fatores.
Primeiro: há um desemprego estrutural de grande proporção em escala global, ainda que ele seja diferenciado entre os países. Os EUA hoje não vivem um desemprego profundo, mas alguns anos atrás ele era maior. No Brasil, se formos contabilizar o desemprego, mais desalento, mais subutilização, nós chegamos a 28 milhões de trabalhadores. Se acrescentarmos a informalidade, esses dados explodem.
Em uma sociedade na qual o desemprego, o subemprego e a precarização são imensos, há um chão social que permite que o empreendedorismo ganhe força.
Segundo: isso ocorre em um ideário neoliberal. Um mundo onde a desregulamentação do trabalho, a perda de direitos sociais, é um “modus operandi” das corporações. É preciso desregulamentar o trabalho e reduzir os custos.
E isso se dá em um momento em que o mundo tecnológico vive uma impulsão profunda. A cada momento, a cada dia, a cada segundo, um novo invento. Não importando se esse invento tem um sentido humano social ou não. O que importa é que ele seja uma vantagem de um grupo de corporações em relação a outra.
E o terceiro elemento: o Estado vem cada vez mais se desobrigando de qualquer tipo de seguridade social, desde o fracasso do Estado de bem-estar social na Europa e dos Estados do tipo keynesiano em várias partes do mundo. Vemos o caso da reforma da Previdência hoje. Está evidente que nós vamos ver milhões de pessoas sem nenhuma perspectiva de Previdência.
Nesse momento é que ganha corpo a ideia falaciosa, mistificadora, do empreendedor. É uma das poucas alternativas que o mundo do trabalho oferece frente à corrosão dos direitos e garantias sociais. É isso ou o desemprego completo.
É por isso que o empreendedorismo é poderoso ideologicamente, porque é isso ou nada. Ao mesmo tempo, a maioria expressiva dos empreendedores vive aos solavancos.
Quando a [ex-premiê britânica] Margaret Thatcher ganha o poder na Inglaterra, em 1979, ela diz claramente que o capitalismo inglês tem que converter cada cidadão em um investidor. Essa não é uma ideia nova, só que, agora, com a corrosão muito maior dos direitos sociais, são poucos os países que conseguem diminuir esse nível de ataque.
Qual é o objetivo do governo ao incentivar esse empreendedorismo, por meio de políticas como a formalização de motoristas de aplicativo via MEI?
O empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos. E, como essas novas modalidades de trabalho são deprimentes, a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença.
Assim, essa alternativa de converter os trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos em um MEI é como legalizar a burla. Isso porque os motoristas dessas plataformas, utilizando automóveis, motos ou bicicletas, não são trabalhadores autônomos. Eles não definem o preço da corrida, não controlam os algoritmos que os comandam, e são avaliados a cada corrida que fazem, podendo, inclusive, ser descredenciados se não tiverem notas altas em suas avaliações.
Enfim, essa sua conversão em MEI não passa de uma forma de legalizar a burla, aquela que é responsável pela supressão de direitos do trabalho assalariado e que, por isso, trará consequências funestas para uma sociedade que realiza uma demolição completa dos direitos do trabalho.
Que isso seja desse modo alardeado por um representante do governo é a expressão plena de uma política de abandono completo da classe trabalhadora no Brasil.
Essas novas formas de trabalho são muito concentradas no setor de serviços, hoje. Elas podem se expandir para outros mercados?
Há um alto potencial de expansão. O trabalho é visto como custo. E o que você faz com custo em situações que tem de reduzir? Corta. Isso leva à retração de todo tipo de trabalho manual que puder ser substituído pelo digital. Ou seja, se puder introduzir a inteligência artificial na produção, você introduz.
Na agroindústria, hoje já há trabalhos que são mediados pelo mundo digital, o que faz crescer as possibilidades do trabalho com menos regras, sem regulamentação.
Na indústria, por exemplo, terão de criar um conjunto de novos trabalhadores do mundo digital para operar fábricas de ponta. As máquinas vão conversar entre si, onde hoje conversam os indivíduos. Só que terá gente operando esse maquinário digital. Mas, paralelamente a esse crescimento do topo, que é limitado, nós vamos ter uma perda brutal de trabalho.
Isso afetará todas as áreas da produção. Todas elas.
É possível que aumentem as tensões na relação entre trabalhadores e empresas?
Certamente. Nós tivemos no começo de maio a primeira tentativa de greve mundial de trabalhadores do Google. Naturalmente que essa greve foi um pouquinho mais expressiva em algumas partes, menos em outras, inexistiu em outras. Porque, na história da organização de novas categorias, nunca a primeira greve é a mais forte.
E nós estamos em um mundo muito difícil. Muita gente me diz: “Mas, professor, toda vez que eu entro em um Uber ou converso com esses trabalhadores de iFood, da Rappi, eles estão contentes com o trabalho”.
Se você estivesse há dois anos desempregado, sem nenhuma chance de trabalho, diria que é pior que o desemprego ou melhor? Eu diria: é melhor. O desemprego é o flagelo pior de todos.
O ponto de partida é esse. A primeira chance que os trabalhadores jovens têm hoje é o desemprego. A segunda é o trabalho precarizado.
Só que esse primeiro momento é o da lua de mel com o trabalho. É bacana. Domingo eu não quero trabalhar, não trabalho. Segunda-feira eu trabalho manhã, tarde, noite e madrugada. Hoje eu não estou com fome, trabalho no meu horário de almoço e de janta.
Mas aí começam os infortúnios. Imagine, o trabalhador do Uber que bate o carro, para de andar. Vai ter que alugar um carro ou ter um carro cedido por alguém. O que não é a mesma coisa, não é fácil.
Nós vimos recentemente a morte de um trabalhador de aplicativo de entrega de alimentos com motos. Ele passa muito mal, a empresa para a qual ele presta serviço não se responsabiliza, a empresa para a qual ele estava entregando a alimentação não se responsabiliza, o SUS [Sistema Único de Saúde] não atende, e ele morre. O único que prestou algum socorro a ele foi o consumidor. Isso mostra a tragédia que nós estamos vendo.
As empresas começam a reduzir também os salários, aumentar as suas taxas, e a competição torna-se mais pesada. É evidente que a resposta a isso vai se dar em paralisações, denúncias, manifestações, como tem ocorrido em outras categorias. É claro que o cenário é complicado em escala global. Mas imaginar que não terá resistência é um grande engano.
O presidente Bolsonaro já declarou que é preciso escolher entre “menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego”. Existe essa oposição?
Essa oposição só existe no ideário selvagem daqueles que querem um mercado de trabalho selvagem. Não é o direito que garante mais ou menos emprego. O emprego maior ou menor depende do movimento da economia. É uma falácia e é uma mentira vergonhosa dizer que, se há menos direito, há emprego.
O que nós temos que discutir no Brasil hoje é se nós queremos o caminho da dignidade mínima para a população trabalhadora, ou nós queremos o caminho do que eu chamo do privilégio da servidão, da lei da selva, da corrosão completa. Portanto, essa tese que relaciona uma coisa à outra é falaciosa, mentirosa e manipuladora.
Fonte: Uol