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Insegurança endêmica na América Latina

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Por Carlos Santiso e Nathalie Alvarado.

Apesar de a América Latina e o Caribe serem considerados oficialmente regiões em estado de paz, eles apresentam taxas de homicídio comparáveis às de zonas de guerra. O massacre de 43 estudantes mexicanos em Iguala, em setembro de 2014,1 acentuou o mal-estar perante uma violência que se tornou incontrolável. Todos os dias, cerca de 380 pessoas são assassinadas na região. De acordo com os números do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (ONUDC),2 dois terços dessas mortes se dão por arma de fogo. Com 10% da população mundial, a região concentra 30% dos homicídios e apresenta uma taxa de 25 mortos por ano para 100 mil habitantes, o que significa mais de quatro vezes a taxa média mundial (6,2).

As atividades criminais não estão espalhadas de maneira uniforme pelo território geográfico. A América Central e o Caribe são particularmente afetados. O aumento das infrações ligadas ao tráfico de drogas e às quadrilhas, que facilitam a impunidade e a circulação de armas, nutre a espiral infernal da criminalidade. Honduras, estatisticamente o país mais violento do mundo, possui uma taxa de 90,4 homicídios por 100 mil habitantes, seguido por Venezuela (53,7), Belize (44,7) e El Salvador (41,2).

Além dos mortos, a insegurança engloba extorsão, sequestros, roubo, tráfico e violência contra a mulher. As estatísticas oficiais, estabelecidas com base em informações incompletas, não fazem jus à amplitude da situação. Muitos crimes não são denunciados por medo de represália ou por desconfiança em relação às instituições que deveriam zelar pelo respeito às leis. Por exemplo, segundo o Envipe 2014,3 o último estudo sobre atos de violência realizado pelo Instituto Nacional Mexicano de Estatística (Inegi), cerca de 94% dos crimes cometidos em 2013 não foram denunciados às autoridades. E apenas metade dos casos relatados foi objeto de investigação preliminar.

Outro indicador da proporção que ganhou o sentimento de insegurança: o último estudo do Instituto Latinobarómetro4 mostra que esse tema inquieta os cidadãos mais que o desemprego em doze dos dezoito países observados. Em 2005, a criminalidade constituía a principal preocupação de 5% dos latino-americanos; em 2013, de 30% deles.

O custo econômico das atividades criminais chegaria, em média, a 13% do PIB da região.5 De acordo com o Global Peace Index, em 2014, as despesas ligadas à prevenção e reparação das violências cometidas contra pessoas e bens absorveram 20% do PIB em Honduras, 15,5% em El Salvador, 8,7% na Guatemala e 7,4% no Panamá.

Diversos fatores contribuem para a insegurança na região. Sem dúvida, o tráfico de drogas e o crime organizado exacerbaram as dinâmicas da violência ao longo da última década; mas, segundo a ONUDC, apenas 30% dos homicídios são ligados ao crime organizado e às quadrilhas. A estratégia da mano dura(“mão de ferro”) e os códigos penais repressivos de forma geral agravam a situação.

Em geral, a violência começa em casa: a que afeta as mulheres e não para de aumentar. Em doze países estudados pela Organização Mundial da Saúde (OMS),6 uma em cada três mulheres entre 15 e 49 anos é vítima de violência doméstica, em geral de um companheiro ou ex-companheiro. Contudo, a maior parte delas não denuncia o agressor, e a atenção ao tema permanece insuficiente.

 

Prisões ou escolas do crime?

A maioria dos autores de homicídios, assim como 40% das pessoas assassinadas, é de homens entre 15 e 29 anos. Na América Latina, 60% da população tem menos de 30 anos. Os homens que vivem em ambientes desfavorecidos têm uma chance em cinquenta de serem assassinados antes do 31º aniversário.7 Um em cada cinco jovens – ou seja, 32 milhões de pessoas na região, o equivalente à população do Peru – não possui trabalho nem diploma. O sentimento de alienação e a falta de perspectiva econômica, assim como a ampla circulação de drogas, álcool e armas, encorajam comportamentos criminosos. As atividades ilegais se revelam mais lucrativas que um emprego tradicional, e as quadrilhas fornecem um sentimento de pertencimento e proteção em um contexto de pobreza e instabilidade familiar.

O problema é particularmente agudo em ambientes urbanos, onde reside 80% da população. Os homicídios se concentram em bairros pobres, em geral nas periferias de grandes cidades. Segundo o Instituto Igarapé, das dez cidades mais mortíferas do mundo, sete estão localizadas em países da América Latina e Caribe. Alepo, na Síria, é a primeira da classificação, seguida por San Pedro Sula, em Honduras.

Paradoxalmente, na última década, a criminalidade na região aumentou mesmo com a diminuição do nível de pobreza e com importantes avanços na conquista, proteção e garantia de direitos sociais. Apesar dessas tendências positivas, a pobreza extrema, a iniquidade dos salários e a economia informal ainda são muito presentes e alcançam níveis mais estáveis em países com as melhores médias de renda. Segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, em 2014, 167 milhões de pessoas (cerca de 30% da população) ainda viviam em estado de pobreza, e 67 milhões, em extrema pobreza.

A região parece presa às desigualdades. E são justamente essas diferenças – mais que a pobreza – que pesam sobre o aumento da criminalidade e da insegurança. A violência se desenvolve mais facilmente no seio de grupos pauperizados das zonas urbanas. Contudo, a cada tipo de crime corresponde um grupo particular: os homicídios afetam sobretudo os habitantes de bairros pobres; os roubos e sequestros visam principalmente a classe média, enquanto os meios mais abastados se protegem da violência vivendo de forma reclusa em residências protegidas. Atualmente, há mais agentes de segurança privada que policiais na região. A evolução da criminalidade no atual cenário de lentidão econômica permanece imprevisível.

Enquanto o crime organizado cresce, o Estado continua pouco eficaz em controlá-lo. O crime, a corrupção e a impunidade formam um círculo vicioso, pois as instituições encarregadas de manter a ordem perdem qualquer legitimidade popular. A eficácia de políticas de segurança também é afetada pela desfuncionalidade na gestão dos setores judiciário e policial. A polícia sofre para virar a página de um passado autocrático dominado pela doutrina da segurança nacional advinda da Guerra Fria, quando, em nome de uma transformação radical, a violência política cedeu lugar a seu homônimo criminal. Em certos países, os serviços de segurança que antes reprimiam o povo agora pretendem assegurar sua proteção. Essa transição não se faz sem feridos…

A falta de confiança na polícia faz que poucas vítimas denunciem crimes e violências. E, quando o fazem, o processo não é levado adiante e não chega a nenhuma sentença – pelo menos não em prazos razoáveis. Os governos, por seu lado, privilegiam a repressão em detrimento da prevenção e procuram cada vez mais reformar seus códigos penais e reorganizar os processos de investigação. Dessa forma, as taxas de criminalidade elevadas da região corroboram a teoria da economia da criminalidade:8 os futuros delinquentes são agentes racionais que calculam os benefícios de atividades criminais e os riscos que elas implicam. Se as sanções que devem temer (detenção, punição, certeza e rapidez de sentença) lhes parecem negligentes, os perigos relacionados a elas aparentam ser menores.

A situação das prisões também pesa sobre o desempenho do Estado. Os encarceramentos maciços em condições deploráveis reforçam o poder dos chefes de quadrilhas dentro e fora da prisão, pois muitos jovens temem represálias quando são presos. Os autores de infrações menores esperam meses, às vezes anos, antes de serem julgados. Em 2012, no conjunto da região, entre 30% e 50% dos prisioneiros estavam em detenção provisória; na Bolívia, estes eram mais de 80%.9 De acordo com o Centro Internacional de Estudos Penitenciários, em cada 10 milhões de prisioneiros no mundo, 1,3 milhão estão na América Latina e Caribe – onde há 229 detentos em cada 100 mil habitantes, muito mais que a média mundial de 144.10 Nas últimas décadas, a taxa de encarceramento aumentou 120% pela intensificação da guerra às drogas. Muitas prisões parecem ter se tornado escolas do crime em vez de locais de reabilitação. A situação alarmante dos centros de detenção juvenil acarreta uma alta taxa de reincidência.

No entanto, certos programas começam a dar frutos. Primeiro, no âmbito da prevenção: diversas iniciativas enfrentam a violência contra a mulher. Em El Salvador, um programa chamado Ciudad Mujer (“cidade mulher”) oferece às vítimas serviços de qualidade, coordenados e rápidos, como acesso ao planejamento familiar e à contracepção, auxílio imediato em caso de agressão e assistência jurídica e psicológica. O programa também propõe formações profissionais e empreendedoras, assim como serviços de saúde, nutrição e cuidado das crianças. Colômbia, Trinidad e Tobago e México se inspiram nessa experiência.

 

Um desafio tanto social quanto de segurança

Outra iniciativa é reformar a polícia. No Equador, adotou-se uma nova doutrina cujos resultados são promissores. Entre as reformas estruturais empreendidas no país, a criação de polícias de proximidade permitiu que esse setor restabelecesse vínculos com as comunidades, além de melhorar a qualidade e a atualização de informações relacionadas à criminalidade, que servem para guiar o investimento de recursos. O orçamento destinado à segurança dobrou, passando de 1% para 2% do total da União, e os funcionários ganham salários melhores que seus homólogos da região. O Estado equatoriano investiu mais de US$ 80 milhões na criação de quatrocentas delegacias comunitárias e na instalação de mais de 1 milhão de “botões de pânico” e alarmes em locais públicos e comércios. Essas reformas levaram a melhorias consideráveis: em três anos, as taxas de homicídio caíram 64%, para oito homicídios em cada 100 mil habitantes por ano. Com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Colômbia, o Uruguai, o Brasil e Honduras realizaram reformas similares.

Em seguida, é preciso limitar a impunidade. Em um estabelecimento supermoderno, que atende às mais altas normas internacionais, o Panamá experimenta um modelo de reabilitação inovador destinado a menores infratores, a fim de prevenir a reincidência. Um terço da população carcerária juvenil se beneficia desse projeto, que dá acesso a serviços de saúde, programas esportivos, formações técnicas e aprendizados profissionalizantes. Os primeiros resultados indicam mudanças de comportamento e redução de reincidência. Esse tipo de iniciativa, porém, ainda é escasso na região.

Finalmente, é preciso também reforçar a governança. O estado de Pernambuco, no Brasil, reorganizou a gestão de políticas para a segurança com a introdução de métodos modernos que visam a resultados objetivos. O Pacto pela Vida, instaurado em 2007, é um exemplo. Segundo o secretário de Defesa Social, a taxa de homicídios caiu cerca de 40% entre 2006 e 2013 no conjunto do estado, e 60% na capital, Recife. Mas ainda assim permanece alta: 35 homicídios em cada 100 mil habitantes.11

Diante de um desafio complexo, os resultados das iniciativas em andamento oferecem exemplos promissores de como é possível reduzir a criminalidade e amenizar a violência em países da América Latina e Caribe. A luta contra a criminalidade deve, contudo, manter-se alinhada com a redução das desigualdades e com a ampliação de oportunidades para os jovens, para que tenham mais mobilidade social, educação e acesso ao mercado de trabalho. A violência representa, para além do desafio da segurança, um desafio social.

 

Carlos Santiso e Nathalie Alvarado

 Carlos Santiso e Nathalie Alvarado são, respectivamente, chefe da Divisão para Reforço de Capacidades Institucionais de Estado do Banco Interamericano de Desenvolvimento e coordenadora do grupo encarregado da segurança cidadã dessa divisão.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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