Apesar do tom ameaçador adotado pelo presidente Jair Bolsonaro em relação a recentes decisões do STF (Supremo Tribunal Federal), a Constituição e as leis do país não permitem ao mandatário adotar um caminho que não seja usar a própria Justiça para recorrer de medidas judiciais com as quais não concorda.
É que o Executivo, e consequentemente seu chefe, não está acima do Judiciário e do Legislativo, segundo o princípio da separação dos Poderes. Tanto é assim que a Constituição estabelece expressamente que, se o presidente não cumprir as decisões judiciais, estará sujeito a um processo de impeachment, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
No último domingo (3), diante de centenas de apoiadores, Bolsonaro disse: “Peço a Deus que não tenhamos problemas essa semana. Chegamos no limite, não tem mais conversa, daqui pra frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição, ela será cumprida a qualquer preço, e ela tem dupla mão”.
A irritação do presidente teve como causa principal três decisões judiciais dos últimos dias. A mais significativa foi a do ministro do STF Alexandre de Moraes, que suspendeu em 29 de abril a nomeação de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal.
No sábado (2), mais um revés no tribunal: o ministro Luís Roberto Barroso decretou a suspensão da ordem de expulsão dos diplomatas venezuelanos que estão no Brasil representando o regime do ditador Nicolás Maduro.
No Palácio do Planalto, há receio de que o STF determine que Bolsonaro exiba o resultado de seu exame para o novo coronavírus, assunto ainda em andamento nas instâncias inferiores da Justiça Federal.
O mandatário diz que não contraiu a Covid-19, mas se recusa a revelar os documentos com o diagnóstico.
Essas três medidas judiciais são controversas no âmbito da comunidade jurídica, mas há unanimidade entre os especialistas ouvidos pela reportagem de que não há nenhum tipo de “canetada” do presidente que possa se sobrepor ao Judiciário.
Quais os limites legais de Bolsonaro para reagir ao STF e a outras instâncias do Judiciário? De acordo com o professor de direito constitucional da FAAP (Faculdade Armando Alvares Penteado) e advogado Ricardo Cury, a Constituição prevê um sistema de freios e contrapesos entre os Poderes da República no qual nenhum deles está acima dos outros.
“O presidente da República somente pode se valer de recursos judiciais previstos na ordem jurídica para combater decisões que entenda inoportunas, ilegais ou inconstitucionais”, diz Cury.
Alessandro Soares, professor de direito constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que, se o presidente achar que uma decisão do Judiciário é ilegal ou inconstitucional, ele terá que acionar a Advocacia-Geral da União, braço jurídico da gestão federal.
O Judiciário está seguindo a Constituição nas ordens para barrar a nomeação na PF, a expulsão dos diplomatas venezuelanos e em relação à divulgação do exame? O mérito dessas decisões pode ser discutido, mas há consenso entre especialistas de que as determinações seguiram as formalidades da legislação, cabendo ao presidente cumpri-las ou apresentar recursos.
O Código Penal fixa como crime a desobediência à ordem legal de funcionário público, com pena prevista de até seis meses, além de multa.
Bolsonaro esboçou na semana passada uma crítica ao teor individual da decisão sobre a direção-geral da PF, chamando de “canetada” a ordem expedida por Alexandre de Moraes no caso.
Nos últimos anos, se tornou frequente no meio político a crítica a medidas individuais e provisórias dos ministros da corte, sem a chancela dos demais colegas do tribunal.
Mas, no ano passado, o próprio Bolsonaro apoiou medida individual expedida no STF, na ocasião pelo ministro Dias Toffoli, que afetou inquérito contra seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado no Rio de Janeiro por suposta prática de “rachadinha” com ex-assessores.
“Não há nenhuma ilegalidade nas decisões [que desagradaram Bolsonaro]. Pode-se discutir o mérito, mas o modo como elas foram tomadas não tem problema nenhum. Não dão nenhum razão ou pretexto para alguém descumpri-las”, diz o professor da Faculdade de Direito da USP Diogo Coutinho.
Para o professor de direito constitucional Thomaz Pereira, da FGV Rio, é razoável questionar se a liminar de Moraes é a melhor interpretação da Constituição. “Mas o espaço para isso é o recurso, recorrer, exigir um posicionamento público do tribunal. Isso é completamente diferente de afirmar que vai desobedecer uma ordem judicial.”
Quanto à liminar do ministro Luís Roberto Barroso que suspendeu a expulsão de diplomatas venezuelanos, os especialistas entendem que o contexto de pandemia reforçou a regularidade da medida.
Já a ordem de primeira instância para a divulgação dos exames do presidente para eventual infecção pelo novo coronavírus divide opiniões. Por um lado, há o interesse público em saber o resultado para identificar, por exemplo, se ele violou o decoro do cargo caso tenha mentido a respeito. A Presidência cita o direito à proteção da vida privada.
“Ser o mandatário maior da nação não torna sua vida privada um reality show, a ponto de afastar o direito constitucional à intimidade”, diz Yuri Sahione, sócio da área de direito penal do escritório Cescon Barrieu.
Se Bolsonaro não cumprir uma determinação judicial ele comete crime? Em caso de delito nessa hipótese, qual seria a tramitação do processo? Segundo Leonardo Massud, professor de direito penal da PUC-SP, se o presidente da República não cumprir decisões judiciais, ele pode ser acusado de cometer crime de responsabilidade e ser alvo de processo de impeachment.
Nesse caso, o processo de impeachment se inicia na Câmara dos Deputados, que nomeará uma comissão especial encarregada de formular a acusação, segundo Yuri Sahione.
Aprovado o termo de acusação pela comissão especial, esse é submetido ao plenário da Câmara para votação. Uma vez aprovada a viabilidade da acusação, esta é enviada ao Senado que dará início ao processo e julgamento pelos senadores.
O presidente comete crime ao apenas ameaçar o sistema de freios e contrapesos dos Poderes previsto na Constituição? Para Roberto Dias, professor de direito constitucional da PUC-SP e FGV-SP, a Constituição configura como crime de responsabilidade o ato do presidente que atente contra “o livre exercício do Poder Legislativo e do Judiciário”.
Dias afirma ainda que a lei 1.079, de 1950, que define os crimes de responsabilidade, diz que são crimes dessa natureza “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças”.
Para Yuri Sahione, as recentes afirmações de Bolsonaro ainda não podem ser consideradas crime de responsabilidade. “Embora o presidente esteja flertando com o ilícito ao participar e apoiar manifestações, a tradição do nosso sistema jurídico indica ser necessário um pouco mais de gravidade nas ações para se reconhecer o ilícito de responsabilidade.”
O QUE DIZ A LEI SOBRE O DESCUMPRIMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS
- Segundo o artigo 85 da Constituição Federal, o presidente da República comete crime de responsabilidade, passível de processo de processo de impeachment, se praticar ato que atente contra “o cumprimento das leis e das decisões judiciais”.
- A lei 1.079, de 1950, específica sobre os crimes de responsabilidade, tem um capítulo só para os “crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias”.
- De acordo com o artigo 12 desse texto legal, o presidente comete ato ilícito se “recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo”.
O QUE PREVÊ A LEGISLAÇÃO EM CASO DE AMEAÇAS AO JUDICIÁRIO
- O artigo 85 da Constituição Federal estabelece que é crime de responsabilidade o ato do presidente da República que atente contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário”.
- Essa prática ilegal também está prevista na lei 1079 de 1950, que trata dos crimes de responsabilidade.
- É ilícito o ato de “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças” e “usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício”, de acordo com a lei.
Fonte: Folha de São Paulo