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Igrejas evangélicas neopentecostais dominam conselhos tutelares em São Paulo

Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), maior expoente entre as igrejas neopentecostais, tem se prestado a influenciar o futuro de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade nas periferias do país fora dos cultos. A igreja tem mirado os conselhos tutelares, criados para defender os direitos da população carente. Vários municípios assistem, há alguns anos, a uma verdadeira tomada de poder desses órgãos por parte de grupos religiosos eleitos pelo voto popular. Em São Paulo 53% dos conselheiros que tomaram posse em 2020 são ligados a denominações neopentecostais, segundo levantamento feito pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. No Rio não existe um dado oficial, mas levantamento feito por conselheiros a pedido do EL PAÍS dá conta de que lá esse número se aproxima de 65%. A eleição para conselheiros de 2019 foi uma das mais polarizadas dos últimos anos, com igrejas e setores laicos disputando os conselhos voto a voto. Os mandatos vão até o final de 2023.

Na capital fluminense, esse fenômeno virou caso de Justiça: em setembro, o Ministério Público do Estado entrou com um pedido de afastamento imediato de Ahlefeld Maryoni Fernandes —que é membro da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)— do cargo de Coordenador dos Conselhos, espécie de instância máxima dos conselhos tutelares do Rio. Ele teria agido nas eleições de 2019 para beneficiar candidatos ligados ao seu grupo religioso. Mas esse não é o primeiro problema de Fernandes com a lei. No ano passado ele perdeu o mandato de conselheiro tutelar por suspeitas de corrupção. Nada disso impediu que fosse conduzido à chefia dessas entidades pelo prefeito Marcelo Crivella (Republicanos).

A ânsia por participação política destes movimentos religiosos é explicada por suas origens. “Uma característica fundamental do neopentecostalismo, em especial das denominações brasileiras surgidas no final dos anos de 1980, como a IURD, é que elas estão vinculadas ao processo de redemocratização do país”, explica Jacqueline Teixeira, doutora em antropologia social e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). São movimentos religiosos urbanos “que desde o início buscaram se articular politicamente”. Isso também tem relação com uma característica destas denominações, que prevê uma “ética de ação no mundo”, sem foco em introspecção, como budismo, por exemplo. “É sempre pensando uma ação salvadora, um viés intervencionista na realidade”, afirma a professora. E foi este processo de criar estratégias de “aproximação e ocupação de todas as instituições do Estado de Direito” que levou à presença destas igrejas nos Conselhos Tutelares.

Criados em conjunto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, os Conselhos Tutelares têm por obrigação zelar pelos direitos desta parcela da população. Estes direitos, diz a lei, “aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença (…) ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”. No entanto, a ascensão das igrejas evangélicas neopentecostais como força política e seu domínio sobre os Conselhos por vezes se coloca como empecilho ao cumprimento de parte destes direitos, especialmente quando o assunto é liberdade religiosa, questões de identidade de gênero e costumes.

A ação de conselheiros tutelares ligados a grupos religiosos radicais entrou em evidência neste ano. Em agosto, dois casos de grande repercussão nacional jogaram luz neste fenômeno: o primeiro foi o da menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo companheiro de uma tia na cidade de São Miguel, no Espírito Santo. Em situações como esta a legislação brasileira garante o acesso ao aborto legal e seguro. Mas não foi tão simples: a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, intercedeu pessoalmente no caso, enviando emissários para o local na tentativa de demover a família da vítima de realizar a interrupção da gestação, já autorizada pela Justiça.

Damares teria contado com a ajuda —e informações confidenciais— prestada por dois conselheiros tutelares conservadores ligados às neopentecostais que atuaram no caso, algo que ainda é alvo de investigação por parte do Ministério Público. Posteriormente a criança conseguiu realizar aborto em outro Estado, não sem antes ter seu nome e endereço exposto nas redes sociais por pessoas ligadas à ministra, como a ativista de extrema direita Sara Giromini.

O segundo caso envolveu uma mãe que perdeu a guarda da filha de 12 anos a mando do conselho tutelar de Araçatuba, no interior de São Paulo, depois que a menina teve a cabeça raspada de forma consensual em um ritual de iniciação de candomblé. A avó da menina, que é evangélica, foi a responsável pela denúncia, na qual alegou maus-tratos e abuso sexual, tese encampada pelos conselheiros sem comprovação factual. Para a defesa da família, se trata de um caso de intolerância religiosa. Dias depois a Justiça determinou a restituição da guarda para a mãe.

Casais que passam por um divórcio —e os impactos da separação na criança— seriam tratados como um problema de “falta de Deus na vida”, crianças LGBTs são encaminhadas para “sessão de descarrego na igreja”, e crianças que se tornam violentas por sofrer bullying na escola são ameaçadas com envio para abrigos. Estes casos foram relatados por conselheiros tutelares de São Paulo, e envolvem a atuação de colegas ligados à IURD durante atendimento a famílias em conflito.

A IURD leva a eleição para os conselhos a sério. No site da Igreja, uma página estimula os fiéis a votar “em pessoas de bem”. Por vezes essa campanha acaba sendo mais ostensiva: fontes do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, que organiza o pleito, informaram ao EL PAÍS que candidatos tiveram suas candidaturas impugnadas quando se descobriu que pastores estavam orientando voto para eles durante os cultos, o que é vedado. Além disso, alguns aspirantes a conselheiro estavam usando o CNPJ da Universal para comprovar a periodicidade e o termo de voluntariado, uma exigência do edital. Na prática, afirmavam que haviam cumprido o pré-requisito de trabalho voluntário em atividades ligadas aos templos do bispo Edir Macedo. Isso só poderia ser feito caso a igreja fosse cadastrada no Conselho da Criança como entidade de atendimento, algo que não ocorre tendo em vista o caráter religioso da instituição.

Procurada pela reportagem, a IURD informou que “não participa direta ou indiretamente das eleições para os conselhos tutelares. Contudo, como segmento da sociedade, defende que todos —fiéis ou não— envolvam-se ativamente com a vida brasileira”. Ainda de acordo com a nota, a “Universal repete que cumpre rigorosamente as leis do Brasil e dos outros 134 países onde atua”.

“A serviço de quê?”

Um perfil mais conservador nos conselhos têm um efeito dramático para uma parcela específica da sociedade, apontam seus críticos. “Quem procura o conselho tutelar já é um segmento mais vulnerável, com direitos violados. E, dentro deste universo, a população preta, LGBT e periférica é a que mais sofre com o desserviço de alguns conselheiros”, afirma Fernando Júnior, diretor de formação da Associação Paulistana de Conselheiros e ex-Conselheiros Tutelares (APCT). Ele questiona também a interferência do poder religioso em uma entidade que deveria agir de forma laica. “A IURD tem quase 50% dos conselhos de São Paulo. E fica a pergunta: estão a serviço do quê? Estão sensíveis às causas sociais? Quando essas forças interferem criam um projeto que não necessariamente está alinhado com o melhor interesse da sociedade”, diz. Via de regra as famílias e jovens vítimas de um atendimento ideológico de um conselheiro não denunciam estes comportamentos irregulares.

A atuação equivocada de um conselheiro tutelar pode colocar obstáculos enormes na vida de um jovem em situação vulnerável, levando-o para dentro da Fundação Casa, por exemplo. O ex-conselheiro Valdison da Anunciação Pereira explica: “Várias vezes ligavam da delegacia dizendo que tinham apreendido um ‘menor’ por ato infracional sem violência [furto simples, receptação e tráfico], e dizendo que não localizaram a família”. Como a infração não foi violenta, a internação na Fundação Casa e o cumprimento de medida socioeducativa não é a única —e por vezes não a melhor— solução possível para o jovem. Mas Pereira assistiu atônito a colegas inexperientes, que entraram nos conselhos durante a onda neopentecostal, responderem ao delegado que “essa questão não era da alçada deles”. “Podiam ter ido atrás da família ou encaminhado para um o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes, onde a criança ou o adolescente poderia ficar abrigada”, diz.

O conselheiro José Antonio de Lima Neto, 36, frequenta a Igreja Universal do Reino de Deus desde os 13 anos, e atua nos CTs de São Paulo há cinco. Ele afirma que a maioria dos colegas pauta seu trabalho com base no ECA e na Constituição. “O princípio tem que ser o ECA sempre, e não a religião. Não devemos jamais usar conhecimento teológico nos nossos atendimentos”, afirma. Neto cita como exemplo um atendimento feito por ele envolvendo um menino trans: “A família, principalmente um tio que morava com ele, não aceitava”. Independentemente de suas crenças, o conselheiro orientou “a família de que o importante é o jovem se sentir bem, e disse que o adolescente tinha direito de se vestir e se comportar como bem entendesse, e que isso era inclusive melhor para ele”.

Este processo de ascensão das neopentecostais nos conselhos tutelares não ocorreu da noite para o dia. “Eu comecei a perceber esse impacto de 2008 para cá. Antes ocorria de forma mais tímida, mas a partir daquele ano ficou visível uma atuação mais organizada”, conta Júnior, da APCT. Nos anos de 1990 o perfil dos conselheiros era de pessoas ligadas a movimentos sociais e algumas pastorais sociais da Igreja Católica. “A partir de 2005 começou uma atuação mais ligada a partidos políticos, e em seguida se fortaleceram as neopentecostais”.

O ex-conselheiro Pereira também acompanhou em primeira mão a tomada dos conselhos por religiosos conservadores. Dentre as características deste grupo ele destaca a “falta de experiência” no atendimento à crianças e o “desconhecimento” das funções do cargo. “Quando eu saí do conselho, uma pessoa ligada à Universal que nunca tinha trabalhado com isso foi eleita para coordenar a comissão de acompanhamento de sistema nacional do atendimento socioeducativo [que acompanha a situação de jovens que cumprem alguma medida penal após cometer infração]”, lembra Pereira. “Depois de alguns dias no cargo, ele me chamou de lado perguntando se eu podia passar o contato ‘de um tal de Sinasi sobre quem todo mundo fala”, diz em meio a uma risada. Sinasi é o Sistema Nacional do Atendimento Socioeducativo, e não uma pessoa.

Em contraponto a Pereira e Júnior, Jacqueline, do Cebrap, aponta que a IURD apenas ocupou nos conselhos um nicho político “que estava praticamente abandonado”. “E isso é pensado como uma tecnologia eleitoral e de aprendizado político para conselheiros”, diz. Além disso, a professora destaca que existe uma relação entre estes órgãos outras esferas políticas, como as câmaras municipais, uma vez que a posição de conselheiro possibilita uma aproximação grande do Estado com a população. “As eleições para os Conselhos Tutelares são um termômetro e um treino para que eles transitem em outros processos eleitorais maiores”.

A presença de bispos e pastores participando do dia a dia das atividades dos conselhos também não é rara. “Teve conselho em São Paulo no qual em determinado dia da semana o pastor ia até lá para fazer intervenções durante os atendimentos”, conta Pereira. Aqueles casos identificados pelos conselheiros como sendo “questões espirituais” eram levadas para que o “guia” da Igreja cuidasse.

Fonte: El País.

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