Em 2013, a repressão desmedida da Polícia Militar durante as Jornadas de Junho acendeu uma centelha de esperança de que, finalmente, a sociedade iria discutir a reforma da segurança pública no Brasil. Afinal, porrada e tiro na classe média costuma surtir algum efeito. Triste ilusão. O que se viu foi o inverso: mais treinamento para a repressão, mais bombas e até uma pretensa lei antiterrorismoque pode deixar tudo pior.
A cena da PM de São Paulo encurralando e atacando indiscriminadamente os manifestantes contra o aumento da passagem de ônibus na Avenida Paulista, na terça-feira 12, é escandalosa. A imagem escancara a desfaçatez de uma instituição que, ao invés de garantir direitos, suprime-os e passa por cima da lei impedindo a livre manifestação.
Ao invés de defender o cidadão, a polícia tornou-se ela mesmo uma ameça, sobretudo se você for negro e viver na periferia. A instituição tornou-se uma contradição em si, que não cabe na democracia que conquistamos.
Não faltam exemplos para retratar o quanto andamos mal de polícia, seja a militar, seja a civil. Bombas, drogas e qualquer tipo de "prova" plantada na mochila de manifestantes, de tão banalizadas, tornaram-se mero detalhe em um País onde Amarildos simplesmente desaparecem e onde jovens pobres são metralhados sem razão dentro do próprio carro.
Até há pouco, ainda tínhamos os vergonhosos Autos de Resistência, que não eram, senão, uma licença para matar com a garantia da impunidade (embora ainda seja preciso avançar, já que o termo substitutivo nos boletins de ocorrência continua dando brecha à violência policial).
Nada espanta vindo da polícia. A violência é parte do sistema, assim como a corrupção (afinal, tráfico de drogas não existe sem parceria policial). O que espanta de verdade é o silêncio da classe política sobre a polícia que temos.
Desde o fim da ditadura, as principais instituições do país foram reformadas. Ganhamos uma nova Constituição, um sistema de saúde universal, houve mudanças na educação, no Ministério Público e por aí vai. Já a polícia continua exatamente a mesma.
Nada mudou no quarteis, onde PMs são ensinados a ver manifestantes não como cidadãos, mas como potenciais ameaças ao sistema, seguindo a cartilha da velha doutrina de segurança nacional.
Reformar a polícia é questão urgente. Desmilitarizar a PM é pouco. É preciso também voltar os olhos para a Polícia Civil, já que apenas 5% dos inquéritos de homicídios são concluídos no País segundo levantamento de 2013 da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp). Tamanha ineficiência é a prova cabal de que o atual modelo não funciona.
O Brasil, aliás, é o país recordista em número de assassinatos no mundo. São 56 mil por ano. E a atual estrutura de polícia diz muito sobre essa estatística horrorosa. Impressionante como a sétima economia do mundo, que tem aspirações de ser uma potência global, conviva com tamanho nível de violência e ache isso normal.
Apesar dos tiros de borracha e de tanto gás lacrimogêneo inalado, a reforma da polícia nunca foi pauta exclusiva de nenhuma grande manifestação. O tema é constante nos protestos, mas sempre acaba em segundo plano na narrativa da imprensa.
Uma reivindicação urgente é a independência da Corregedoria. Hoje, o órgão que investiga a conduta de policiais é subordinado ao Comando Geral da PM. Seis meses após junho de 2013, fiz uma reportagem para a BBC Brasil para saber quantos inquéritos de abuso policial durante os protestos haviam sido concluídos. A PM se negou a informar e só liberou o dado por meio da Lei de Acesso à Informação. Nenhuma investigação havia chegado ao fim.
Não surpreende que 70% da população não confie na polícia, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Mas enquanto uma minoria continuar tirando selfie com policial em dia de manifestação verde amarela, a mídia, o Ministério Público e quem estiver no governo continuarão coniventes. Até lá, a linguagem será sempre a do cassetete.
Fonte: Carta Capital