Projetos para barrar decretos do presidente não foram deliberados; relator alegou falta de tempo
Decretos de Jair Bolsonaro que ampliam o acesso a armas entram em vigor nesta semana. Agravamento da violência no país também deverá ser atribuída à negligência do Senado, afirmam autores, já que projetos legislativos para barrar medidas armamentistas do presidente não foram apreciados.
Na véspera do Carnaval que não houve em razão do luto pelas centenas de milhares de mortos pela pandemia, o presidente da República teve o senso de urgência para publicar uma edição extraordinária do Diário Oficial da União para apresentar à nação mais quatro decretos que aumentam o descontrole de armas e munições no país.
Este senso de urgência não lhe ocorreu para buscar vacinas, máscaras, oxigênio, médicos, empregos ou alternativas para milhares de estudantes sem acesso ao ensino à distância durante a pandemia. Não se tem notícia de publicações emergenciais para se abrir mais leitos hospitalares, para se permitir uma renda mínima para que as pessoas pudessem ficar em casa e, assim, retardar a circulação do vírus que mata mais de 3.000 pessoas por dia no Brasil.
Os quatro decretos de fevereiro de 2021 se somam a outras 27 normas unilaterais do Poder Executivo federal publicadas em menos de 30 meses de governo. Essa cruzada armamentista sem precedentes, contrária à legislação aprovada em 2003, ataca o coração do sistema republicano ao subjugar a separação e a harmonia entre os Poderes para satisfazer o interesse de poucos.
Além da irresponsabilidade na condução da pandemia, o governo privilegiou medidas que agravam a tragédia da epidemia de violência no país que lidera o ranking mundial de homicídios —70% cometidos com armas de fogo.
E não é que não houve reação. Mais de uma centena de PDLs (projetos de decreto legislativo) sobre o tema foram apresentados no Congresso, e mais de uma dezena de ações foram protocoladas no Supremo Tribunal Federal para que a ordem constitucional seja restabelecida.
A sociedade civil denunciou o projeto armamentista, e ex-ministros da Justiça e Segurança Pública alertaram a nação sobre os riscos que se colocam à segurança e à democracia brasileira a partir da priorização das armas de fogo, enquanto nossos familiares, amigos e parentes morrem em virtude de uma doença para a qual já temos protocolos para reduzir o contágio e vacina.
A partir da pressão do colégio de líderes, os PDLs apresentados para barrar a corrida às armas de Bolsonaro seriam apreciados na última quinta-feira (8) no Senado Federal. A relatoria dos projetos foi atribuída ao senador Marcos do Val (Podemos/ES), notoriamente ligado aos interesses da indústria armamentista, o que foi denunciado pelos senadores.
Em resposta à senadora Rose de Freitas, que gerou o ultraje entre outras senadoras, o relator defendeu sua isenção afirmando que, seguindo o mesmo raciocínio, a senadora não poderia ser responsável por temas associados “às mulheres”.
Ao fim da sessão, os projetos não foram deliberados porque o relator, que se vangloria de seu largo conhecimento sobre o tema, disse não ter tido tempo para produzir seu relatório. Foram 60 dias em que os projetos estavam suspensos aguardando pela vigência.
A partir do início da próxima semana, quando os decretos entram em vigor, a piora no enfrentamento do tráfico de armas e munições e das mortes por arma de fogo em razão das novas flexibilizações poderão ser atribuídas também à negligência do Congresso Nacional.
Há anos, as organizações que representamos trabalham sem cessar para analisar, disseminar e mobilizar a população brasileira e tomadores de decisão sobre a importância do controle de armas e munições e a gravidade de retrocessos que comprometem a segurança pública e a democracia em nosso país.
É inaceitável ouvir na discussão em uma Casa Legislativa que “não houve tempo” para a produção de um relatório que embasaria uma votação urgente para impedir o descontrole armado no país.
Decisões como a que permitiu a compra de vacina por empresas privadas são tomadas com desassombro, sem discussão, sem transparência. Mas, para o Senado reafirmar sua competência constitucional enquanto Casa maior do Poder Legislativo em uma matéria central para a garantia do direito à segurança e à vida, faltou tempo.
Como organizações da sociedade civil e como cidadãos, nos indignamos diante dessa trágica negligência do Senado Federal. Esperamos que o Supremo Tribunal Federal exerça seu papel constitucional com a responsabilidade e determinação que, infelizmente, o Senado Federal não protagonizou. Não há tempo a perder —e muito menos vidas.
Fonte: Folha de São Paulo