Quatro criminalistas ouvidos pelo Brasil de Fato apontam evidências de execução de civis pela polícia
A operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro que terminou com 25 mortos (sendo um policial) na última quinta-feira (6) na comunidade do Jacarezinho, na zona norte da capital, possui uma série de características que apontam para uma só possibilidade: foi uma chacina conduzida pelos policiais e não confrontos armados entre estes e criminosos suspeitos que resistiram à prisão. É o que afirmam, unanimemente, quatro criminalistas e especialistas em Ciências Criminais ouvidos pelo Brasil de Fato acerca do episódio.
São eles: Antônio Carlos de Almeida Castro, advogado criminal conhecido como Kakay; Vinícius Assumpção, advogado criminal, diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP); Juliana Sanches, advogada criminal, coordenadora do IBCCRIM no Rio de Janeiro, coordenadora do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) e membro do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescentes no Rio (CEDCA); e André Lozano Andrade, advogado criminal, professor de Direito Penal e Processo Penal, conselheiro de Prerrogativas da OAB-SP e conselheiro da Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH).
Os especialistas levaram em conta para chegar a esta conclusão apenas os fatos ocorridos em Jacarezinho que já têm sua veracidade confirmada e admitida pelas autoridades policiais do Rio de Janeiro.
“Em termos humanitários, essa operação foi um completo desastre. Tudo indica que houve excesso da polícia. Tanto pelas fotos e imagens quanto pelos números de mortos de cada lado”, afirma André Lozano Andrade. Segundo ele, há estudos que comprovam, além de um consenso doutrinário internacional entre cientistas criminais, que, em um conflito entre policiais e civis, quando há mais de dez civis mortos para cada agente da lei vitimado, resta evidente a ocorrência de execuções deliberadas ou uso excessivo da força por parte da polícia.
“No caso de Jacarezinho, são mais de 20 pessoas por policial morto, o que indica claramente que houve o uso desnecessário da força letal”, explica o especialista, que completa: “neste caso, ainda não se sabe em quais circunstâncias esse policial morreu. É muito comum, nesse tipo de operação, (o comando da operação) colocar policiais que deseja que sejam executados na linha de frente, e esses muitas vezes morrem por ‘fogo amigo'”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, um dos mais eminentes criminalistas do país, conhecido apenas como Kakay, assim resume a tragédia: “a operação que aconteceu na favela Jacarezinho do Rio de Janeiro é um atentado à civilidade, ao Estado Democrático e de Direito, a toda população do Rio de Janeiro e do Brasil, e estarrece o mundo inteiro”.
“Há um claro abuso na forma do cumprimento de uma ordem que, a pretexto de se chegar a traficantes, pratica uma verdadeira carnificina indiscriminada na favela”. Ele prossegue: “Absolutamente nada justifica que haja em um lugar densamente povoado como é a favela de Jacarezinho uma ação desta violência”.
“A polícia no Rio de Janeiro jamais faria essa ação no asfalto, na zona Sul do Rio de Janeiro. Não é possível que nós tenhamos nos dias de hoje uma ação criminosa como foi essa da Polícia Civil do Rio de Janeiro”, conclui Kakay.
Já a criminalista Juliana Sanches, coordenadora do IBCCRIM no Rio de Janeiro, que realiza um acompanhamento sistemático das operações policiais em seu estado, afirma com todas as letras: “é importante dar o nome certo ao que ocorreu nesta quinta no Rio de Janeiro. Foi uma chacina, talvez a maior chacina da história do Estado, no auge de uma pandemia que chega a mais de 400 mil mortes”.
Ela prossegue: “Nós assistimos à execução de mais de 20 pessoas. Uma dita operação policial que resulta nessa carnificina não pode, em nenhuma hipótese, sob qualquer justificativa, ter ocorrido dentro da legalidade e sem excessos por parte da polícia.”
Com base nos acompanhamentos e estudos que realiza, a criminalista diz: “é preciso dizer que o nosso Estado opera através de uma política de morte em territórios racializados”. Juliana Sanches enxerga elementos de discriminação de classe e de cor nas ações violentas da polícia no Rio:
“O tráfico de drogas não acontece só nas favelas. Ele acontece também nos bairros mais nobres da cidade, e a polícia jamais atuaria com tamanha violência nesses espaços. É inaceitável o que aconteceu nesta quinta no Rio de Janeiro”.
Finalmente, Vinícius Assumpção, diretor do IBCCRIM e presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, em entrevista concedida ao Brasil de Fato ainda na noite da quinta-feira (6), data da ocorrência da operação, já afirmava:
“As informações que chegam ainda são preliminares, mas suficientes para dar conta de uma nítida ilegalidade e abuso na atuação das forças policiais no dia de hoje”. O especialista descreve os elementos de fato conhecidos até a noite da quinta e analisa o que eles significam:
“Segundo o Instituto Fogo Cruzado, cerca de 29 pessoas teriam sido baleadas ao longo de sete horas, até mesmo pessoas que estavam no metro da localidade teriam sido atingidas. Essas características expõem as vísceras de um padrão de atuação policial que não segue mínimos protocolos que respeitem zonas sensíveis”, explica Assumpção.
Segundo ele, o próprio número de vítimas mostra que a polícia opta por uma política de enfrentamento armado deliberado de supostos criminosos, mesmo que em regiões densamente povoadas, onde o bom senso determina que sejam praticadas operações com maior uso da inteligência policial, e não da força. Assim como os demais especialistas ouvidos, o criminalista enxerga como incontestável o elemento de raça e classe social a determinar o grau de letalidade da polícia no Rio:
“A polícia trata territórios (ocupados por moradores) negros como zonas em que a vida não tem absolutamente qualquer valor. Sob o pretexto de combater o tráfico de drogas, as forças policiais mantêm essas regiões em um estado permanente de guerra, não apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil.”
Todos os especialistas ouvidos pela reportagem também foram unânimes ao dizer que é dever de toda a sociedade manter um acompanhamento próximo das investigações que devem se seguir, bem como pressão permanente para que se aponte e puna as autoridades responsáveis.
Fonte: Brasil de Fato