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Bolsonaro, mentiras e panelaço

Por Chico Alves, colunista da Uol.

Com diferença de poucas horas, o Brasil pôde testemunhar ontem duas faces do presidente Jair Bolsonaro. Á tarde, ele falou pelo celular no programa de José Luiz Dantena, na Band, onde pareceu descontraído como quem conversa com um velho amigo. Depois, à noite, em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, Bolsonaro surgiu crispado, lendo o texto escrito previamente com a fluência de um colegial que apresenta à professora o seu ditado.

Não se sabe em qual dos Bolsonaros devemos acreditar, já que os dois – tanto o do programa de Datena, quanto o do pronunciamento – são contraditórios, inverossímeis.

No pronunciamento, 21 dias após a primeira morte causada pela pandemia no Brasil, o presidente finalmente se solidarizou com as famílias que perderam “seus entes queridos” por causa do coronavírus. Muitas foram as reclamações pela falta da manifestação de condolências aos parentes de brasileiros mortos – o presidente se solidarizou antes com o povo inglês.

Dessa vez, garantiu que “o objetivo principal sempre foi salvar vidas”.

No papo com Datena, no entanto, o tom usado não foi tão cuidadoso. Recomendou que cada família cuide dos seus idosos: “Não pode transferir isso para o Estado”.

Na fixação em mostrar ao público que os riscos são menores para os mais jovens – e assim arrumar argumentos contra o isolamento social -, Bolsonaro mais uma vez jogou um monte de números falsos nos ouvidos dos telespectadores que acompanhavam o programa da Band.

Disse que “90% que perdem a vida está (sic) na faixa de 78, 80 anos para cima”. Os números apresentados pelo Ministério da Saúde na mesma tarde eram bem diferentes. Na verdade, 77% dos óbitos ocorreram em pacientes com mais de 60 anos.

O presidente disse também a Datena que abaixo de 10 anos a taxa de mortalidade “é zero” e que “de 10 a 40 anos de idade é de 0,2%”. Outra falsidade. O levantamento oficial registrava ontem algo em torno de 6% de mortes por coronavírus entre 6 e 39 anos.

Bolsonaro foi especialmente infeliz ao citar no dia de ontem a informação inverídica de que ninguém morreu pelo vírus abaixo de 10 anos. Nesta quarta-feira, na capital do Rio Grande do Norte, um bebê de quatro dias tornou-se a vítima mais jovem a falecer de covid-19 no Brasil. Duas semanas antes, outro bebê, de três meses, morreu no Ceará por causa da doença.

Nas horas que antecederam o pronunciamento em rede nacional, notícias davam conta de que Bolsonaro faria um chamamento à união. Uma vez diante das câmeras, jogou novamente para a torcida. Indicou ao público que a conta do isolamento social deve ser cobrada nos estados e municípios, não em Brasília.

“Respeito a autonomia de governadores e prefeitos. Muitas medidas, de forma restritiva ou não, são de responsabilidade exclusiva dos mesmos. O governo federal não foi consultado sobre sua amplitude ou duração”, recitou. Sem dúvida, uma estranha forma de construir parcerias.

Falou de novo da hidroxicloroquina, a panaceia que prega contra a pandemia, e completou resumindo as medidas de apoio aos setores da sociedade mais atingidas pela desaceleração das atividades econômicas.

Mesmo depois de tantos chutes estatísticos, encerrou falando de João 8:32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Não se sabe qual Bolsonaro aparecerá hoje para despachar no Palácio do Planalto. Se aquele entrevistado por Datena ou o que mobilizou a rede de rádio e TV. Na verdade, pouco importa. Nenhum dos dois parece estar ainda à altura de comandar o país em meio à maior pandemia que a humanidade já registrou.

Talvez por isso tantos brasileiros tenham dispensado o pronunciamento do presidente. Enquanto ele falava na TV, muitos preferiram ir à varanda para outra vez bater panelas e gritar xingamentos. Mais do que falar qualquer coisa que lhe vem à cabeça, talvez seja a hora de Bolsonaro apurar os ouvidos.

 

Fonte: Uol

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