Levantamento da CGU inclui processos concluídos entre 2008 e junho de 2022; especialistas falam em subnotificação
Dois em cada três processos de investigação por assédio sexual na administração pública federal terminaram sem qualquer penalidade, segundo dados fornecidos pela CGU (Controladoria-Geral da União) a pedido da Folha.
De 2008 até junho de 2022, foram instaurados 905 processos correcionais para apurar casos de assédio sexual, dos quais 633 foram concluídos e outros 272 ainda estão em andamento.
Entre as investigações já finalizadas, 432 chegaram ao fim sem punição, o que representa 65,7% do total. As demais resultaram em advertência (41), suspensão (90) ou demissão (95) do agressor.
A soma de penalidades (incluindo sua ausência) é maior que o total de processos porque em algumas apurações havia o envolvimento de mais de um agente público.
O levantamento da CGU inclui processos instaurados no âmbito da administração direta, autarquias e fundações, o que compreende ministérios, agências reguladoras e universidades federais.
Os dados não incluem empresas públicas, como é o caso da Caixa Econômica Federal, palco das mais recentes acusações de assédio sexual feitas por funcionárias contra o agora ex-presidente da instituição Pedro Guimarães.
As acusações foram reveladas na terça-feira (28) pelo portal Metrópoles, que relatou também a existência de uma investigação no Ministério Público Federal. Após a divulgação, o caso entrou na mira do TCU (Tribunal de Contas da União) e do MPT (Ministério Público do Trabalho).
As mulheres narraram episódios como toques íntimos sem consentimento, convites incompatíveis com o ambiente profissional e outras condutas inapropriadas.
Uma funcionária da Caixa disse em depoimento à Folha que também foi assediada por Guimarães, presidente da instituição, em um caso até então desconhecido pelas autoridades. Após as primeiras denúncias, o número de mulheres que relatam terem sido alvo de assédio no banco tem aumentado.
Em setores do governo, há o temor de que a prática tenha se tornado uma cultura organizacional dentro da Caixa. O banco contratou uma auditoria externa para aprofundar as investigações, e a nova presidente, Daniella Marques, promete rigor nas apurações.
O número de processos por assédio sexual na administração federal cresceu de forma contínua até 2019, quando teve um pico de 243 novos registros. Em 2020, o trabalho remoto contribuiu para a queda dos números, embora especialistas ressaltem que houve, em paralelo, um aumento nos casos de violência doméstica.
Segundo a CGU, a instauração do processo não é imediata. O chamado “procedimento correcional” é aberto após análise preliminar da ouvidoria, que verifica se a denúncia contém os elementos necessários. Também é realizado juízo de admissibilidade na área correcional, que conclui ou não pela necessidade de apuração.
Mesmo com essa análise prévia, dois terços dos casos terminam sem penalidade. “Os casos de arquivamento podem ter sua causa na não configuração [da prática de assédio], na ausência de provas, entre outros fatores”, diz a CGU.
Já as punições são, em geral, aplicadas após enquadramento do agente por “descumprimento de deveres funcionais”, já que a prática do assédio sexual não está prevista como infração disciplinar na lei 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União.
Apesar da tendência de alta no número de processos que apuram assédio sexual na administração pública, especialistas afirmam que muitos casos ainda passam longe do radar das autoridades, diante da dificuldade das vítimas em relatar o ocorrido.
“Uma denúncia, ainda mais vinculada com relação de trabalho e relação de poder, é sempre difícil por natureza. No caso de uma denúncia de assédio sexual, há elementos que dificultam ainda mais. Há casos de mulheres que são culpabilizadas, ou se sentem envergonhadas”, afirma a advogada Tainã Gois, doutora em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) e conselheira de política para mulheres na Prefeitura de São Paulo.
“A moral da mulher é muito questionada. A denunciante do assédio sexual tem que provar o tempo todo que ela pode ser uma vítima. Ela vai primeiro ser julgada”, afirma Gois.
Para ela, a não punição em dois terços dos processos por assédio sexual na administração pública pode indicar dificuldade em conseguir dar consequência às ações desses agentes. No entanto, ela pondera que, mesmo na ausência de uma penalidade formal, o acusado pode, por exemplo, acabar sendo transferido de cargo.
A procuradora do MPT Andrea Gondim, coordenadora nacional de Promoção da Regularidade do Trabalho na Administração Pública, avalia que ainda há uma cultura de violência e assédio contra a mulher disseminada na sociedade brasileira, que acaba sendo transportada para o ambiente de trabalho.
“Essa violência cotidiana também acontece no nosso ambiente de trabalho, desde a interrupção da fala da mulher pelo homem, a apropriação de ideias, até essa escalada da violência que pode se revelar por meio de comportamentos sexuais indesejados”, afirma.
“Embora diversas empresas e órgãos tenham canais para denunciar esse tipo de violência, muitas vezes esses canais não funcionam ou acabam não dando resposta efetiva à situação, o que acaba aprofundando o problema”, acrescenta Gondim. Segundo ela, a sensação de que a acusação é ineficaz pode desencorajar futuras denúncias.
A subnotificação dos casos de assédio sexual é citada em estudo temático sobre o tratamento correcional do assédio sexual, realizado pela auditora da CGU Sandra Yumi Miada em 2020. Entre as barreiras estão o medo de represália ou retaliação (como demissão e rebaixamento de função), medo de transferência, receio de exposição extrema no ambiente de trabalho e familiar, dificuldade de abordagem do assunto ou descrédito diante do relato da vítima.
No estudo, a auditora se debruçou sobre 49 dos processos instaurados para apurar a conduta de assédio sexual na administração federal e que foram concluídos no período de janeiro de 2015 a outubro de 2019.
Em 96,15% dos casos, as vítimas eram do sexo feminino. Já os agressores eram do sexo masculino em 100% dos episódios analisados. Em 32% dos processos, as vítimas eram menores de idade.
No estudo, a taxa de punição dos processos disciplinares por assédio sexual foi de 38,78% —podendo chegar a 51,35% quando desconsiderados processos cuja análise ficou prejudicada no estudo por ausência de informações sobre seu resultado.
As conclusões do trabalho foram citadas pelo TCU em auditoria operacional aberta em 2020 para elaborar uma radiografia do tema. Um dos resultados foi a formulação de um modelo de prevenção e combate ao assédio, com recomendação das melhores práticas.
Após as denúncias contra Guimarães, o TCU abriu uma fiscalização específica para avaliar toda a política de prevenção e combate ao assédio sexual na Caixa.
“A melhor situação para a mulher é não ser assediada. A punição é uma resposta para a vítima, mas a resposta para a sociedade é uma transformação do ambiente de trabalho, do ambiente institucional”, afirma a advogada Tainã Gois.
Andrea Gondim, do MPT, ressalta que o Brasil ainda não aderiu à Convenção 190 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que estabelece conceitos e definições jurídicas para lidar com o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, seja no setor público, seja no setor privado. “Seria um excelente instrumento para tratar do tema”, diz.
Segundo ela, o MPT foi um dos signatários de uma carta à Presidência da República pedindo que o governo envie ao Congresso proposta de ratificação da convenção, para que ela seja aplicada no Brasil, mas isso ainda não ocorreu.