O discurso “hipócrita” com o qual o presidente Jair Bolsonaro abriu, nesta terça-feira (22), a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), “parece ter sido feito para o público interno do Brasil, seus eleitores, e não para outros chefes de Estado e atores externos, como se espera na ONU”. A opinião é da professora Miriam Gomes Saraiva, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Parece um discurso para depois tirar um pedaço e colocar num blog qualquer. Para efeitos externos, o impacto é muito ruim, até porque, no que diz respeito a meio ambiente e pandemia, basta qualquer chefe de governo perguntar a seu embaixador no Brasil.”
Para a professora, o discurso “hipócrita” de Bolsonaro na ONU é “desconcertante”. “É difícil até falar sobre isso, porque é chocante. Os militares, no passado, tentavam falar do desenvolvimento da Amazônia, com Transamazônica, Zona Franca, uma série de itens que, embora predatórios, até são apontados como desenvolvimento. Mas, Bolsonaro, nem isso defende. Ele mente, simplesmente. Não defende qualquer coisa que seja.”
Pandemia
No discurso, o chefe de Estado do maior país da América do Sul afirmou: “Como aconteceu em grande parte do mundo, parcela da imprensa brasileira também politizou o vírus (causador da covid-19), disseminando o pânico entre a população, sob o lema ‘fique em casa e a economia a gente vê depois’”. Segundo ele, “quase trouxeram o caos social ao país”.
Indiferente à tragédia ambiental que se abate sobre a Amazônia e o Pantanal, Bolsonaro afirmou que os incêndios na floresta ocorrem “onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência”, e que no Mato Grosso a causa é a “alta temperatura”.
Ele disse ainda que o auxílio emergencial pago no Brasil aos mais carentes no contexto da pandemia é de mil dólares. O valor do benefício, R$ 600, em valores de hoje, não chega a 110 dólares, e as quatro últimas parcelas, de R$ 300, serão de 55 dólares.
“A fala revela um individuo frio e mentiroso contumaz. É um discurso extremamente injusto, agressivo, que culpa as vítimas das invasões (as terras indígenas) e encobre a culpa dos responsáveis pelas agressões aos povos originários, seus direitos, suas formas de existência, ao meio ambiente e às florestas no Brasil, diz Cleber Buzatto, secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Repudiamos de forma absoluta essa tentativa desastrosa do presidente Bolsonaro de responsabilizar os povos originários por aquilo de que estão sendo vítimas, os interesses do agronegócio e da mineração, que ele tenta proteger”, acrescenta.
Causas econômicas
A única alternativa aos países que se preocupam com o meio ambiente, os direitos humanos e dos povos originários é parar de comprar produtos de origem mineral e agrícola do Brasil, acredita Buzatto. “Enquanto houver demanda haverá violência e agressão por parte desses setores e a proteção a eles por parte do governo Bolsonaro.”
Na opinião de Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), nesta sua segunda aparição na Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro se manifestou em tom mais moderado do que em 2019. No ano passado, ele ainda representava uma novidade na cena internacional, cenário em que o presidente Donald “Trump surfava em popularidade”.
Em 2019, Bolsonaro afirmou que assumiu um país “à beira do socialismo” e fez referência ao programa Mais Médicos. Citou o programa implantado no primeiro mandato de Dilma Rousseff, como “um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana”. Para Maringoni, ante a provável derrota de Trump para Joe Biden nas eleições americanas, Bolsonaro adotou um discurso mais moderado.
O lado “hipócrita” de Bolsonaro na ONU foi exposto também ao mencionar o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia (UE) e com a Associação Europeia de Livre Comércio. “Esses acordos possuem importantes cláusulas que reforçam nossos compromissos com a proteção ambiental”, disse. Na realidade, o acordo está em xeque na Europa exatamente devido à “política” ambiental de seu governo no Brasil.
Pressões europeias
As pressões sociais contra o acordo são crescentes na Europa. Na sexta-feira (18), o governo francês se pronunciou de maneira veemente contra o acordo comercial entre a UE e o Mercosul. O acordo ainda não foi ratificado, devido aos graves problemas ambientais nos países do bloco sul-americano, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. No ano passado, o presidente liberou, com o Decreto nº 10.084, o plantio da cana na Amazônia, no Pantanal e na Bacia do Alto Paraguai. Leia o decreto aqui.
Mas Bolsonaro continua tentando capitalizar o acordo ainda não finalizado, que interessa mais ao capitalismo europeu do que, por exemplo, à indústria dos países sul-americanos. “O mais provável é que ele continue repetindo isso, que conseguiu a assinatura do acordo. É possível que seja ratificado em algum momento, inclusive depois do fim do governo Bolsonaro”, avalia Miriam Gomes Saraiva.
Fonte: Rede Brasil Atual.