“O Brasil não tem um Estado capitalista”. “Por isso, as finanças públicas faliram”. “A saída – embora dolorosa – é adaptá-las à lógica dos investidores”. Breve estudo sobre três ideias centrais da ideologia dominante
Por José Celso Cardoso Jr, Bráulio Santiago Cerqueira e Felipe Calabrez | Imagem: José Buscaglia, Deixem-nos se satisfazer com as sobras
De acordo com o discurso oficial do governo, a melhora do ambiente de negócios e o ajuste fiscal resgatariam a confiança e o investimento privado, nacional e estrangeiro, recolocando a economia brasileira na trilha da eficiência, produtividade e crescimento. Por trás dessa narrativa não há apenas uma visão equivocada de macroeconomia, como demonstram as evidências internacionais e nacionais, mas há também uma visão distorcida sobre o papel do Estado — na “economia” e em todo o mundo social.
Esta visão deturpada – podemos dizer, um liberalismo de manual – que ignora as complexidades de um país como o Brasil, tem orientado toda a agenda de “reformas” do atual governo, da Previdência à Administrativa provável próximo passo do governo.
Partindo de uma visão ideologizada e negativa acerca do peso e papel que o Estado deve ocupar e desempenhar, em suas relações com os mundos econômico e social, os ideólogos e propagandistas dessa agenda ancoram seus dados e argumentos em um conjunto de ideias falaciosas. Vale citar três delas: i) O Estado brasileiro seria contrário aos interesses do mercado ou do capitalismo como modo de produção e acumulação dominante das relações econômicas no país; ii) estaria falido em termos de sua capacidade própria de financiamento e endividamento; e iii) O país estaria dependente das reformas – da Previdência, Administrativa e microeconômicas – para recuperar a confiança dos investidores privados, o crescimento e o emprego.
Pois bem, é contra tais falácias que o restante desse texto buscará se posicionar.
O Estado brasileiro é anticapitalista, contra os interesses do mercado?
A índole liberal (mais que social!) do Estado brasileiro faz com que ele seja, historicamente, mais perfilado a atender os interesses empresariais e do processo de acumulação capitalista que os interesses diretos e imediatos da grande maioria, aliás, ainda hoje distante ou alijada da cidadania efetiva e do desenvolvimento integral.
Por outra: o capitalismo brasileiro (como qualquer outro, aliás!) é altamente dependente da capacidade do Estado em mobilizar e canalizar seus recursos e instrumentos de políticas públicas em favor do processo de acumulação de capital, em bases privadas.
Prova disso é que por trás da dívida pública e gastos governamentais com juros para a rolagem da dívida, estão credores do Estado que são, em sua maioria, empresas privadas e grandes agentes rentistas, que fazem das finanças públicas uma fonte de acumulação e enriquecimento nem sempre assentado em bases produtivas. Em outras palavras, o mercado de dívida pública no Brasil funciona como um grande mecanismo de rentabilização do dinheiro privado, que permite os chamados “ganhos de tesouraria” de grandes empresas, bancos e companhias de seguro.
Quando se comparam os gastos correntes com juros e os gastos públicos com a Previdência Social, por exemplo, tem-se, de um lado, um processo de acumulação e enriquecimento privado de natureza financeira que pouco contribui para o crescimento real da economia e para a geração de empregos, tributos e renda das famílias. De outro lado, um processo de redistribuição real do fundo público, que encontra nos trabalhadores e suas famílias o destino dos gastos previdenciários, eles próprios impulsionadores – pelo consumo que são capazes de realizar – do crescimento econômico, da arrecadação tributária e do bem-estar material das pessoas e regiões do país.
Tal como demonstrado pela curta, mas exitosa, experiência de desenvolvimento no Brasil entre 2004 e 2014, houve combinação virtuosa de decisões e políticas públicas que tornaram possível realizar, em simultâneo, aumento de renda per capita e redução das desigualdades de rendimentos no interior da renda do trabalho.
Combinação Virtuosa entre Renda Per Capita e Índice de Gini.
Ocorre que tal combinação desejável de fenômenos não é obra do acaso ou da atuação de livres forças do mercado. Requer, ao contrário, combinação virtuosa e longeva de decisões e políticas públicas, orientadas a objetivos complementares e compatíveis entre si, propícias ao crescimento econômico, à geração de empregos, ao combate à pobreza e à redução das desigualdades.
Em suma: capacidades estatais e instrumentos governamentais, porquanto potentes no caso brasileiro, não trabalham sob a lógica do desenvolvimento (includente, sustentável, soberano, democrático), e sim sob constrangimentos jurídicos e liberais do Estado mínimo, construídos e aplicados cotidianamente para impedir ou dificultar o gasto público real, seja em políticas sociais, seja em investimentos estatais.
Hoje em dia, talvez a Lei nº 8.666 (grande dificultadora das contratações públicas), a LRF (grande limitadora dos gastos reais em favorecimento do gasto financeiro), a EC 95/2016 (que impõe limite superior aos gastos primários) e a postura dos órgãos de controle, estes centrados mais em auditorias de conformidade e foco em aspectos triviais da gestão pública para a racionalização de gastos e busca por eficiência, ao invés de preocupação mais ampla sobre a eficácia e a efetividade das ações governamentais, sejam bons exemplos para a justificativa das afirmações precedentes.
O dinheiro do governo acabou?
As políticas de austeridade tratam as finanças públicas e o orçamento público como sendo similares às finanças domésticas e ao orçamento familiar, de modo que ambos, setor público e famílias, deveriam operar segundo o preceito do orçamento sempre equilibrado ou superavitário. Se não agirem assim, em algum momento “o dinheiro acaba”!
Considerar que o orçamento público funciona como o doméstico é uma abordagem não só simplista como também equivocada, ao não considerar que o governo, diferentemente de famílias e empresas, pode, por exemplo, incrementar/reduzir suas receitas por meio de alterações nos tributos. Ademais, não leva em conta que uma parte dos gastos públicos retorna para o governo sob a forma de impostos, e que estes mesmos gastos, pelo volume e qualidade, podem agir favoravelmente sobre a atividade econômica por conta de seu efeito multiplicador, aumentando posteriormente a própria base arrecadatória. Famílias e empresas, por fim, ao contrário do governo, não emitem moeda e nem títulos públicos, bem como não controlam a taxa de juros sobre suas dívidas, como faz o Banco Central.
Desta maneira, a equiparação entre o setor público e as finanças domésticas é, portanto, falaciosa, e seu objetivo é limitar o papel e a importância da política fiscal para o crescimento ou a atenuação dos efeitos dos ciclos econômicos, especialmente em momentos de retração ou recessão econômica. Como pode o dinheiro do governo ter acabado se o Tesouro contava em 2019 com cerca de R$ 1,2 trilhão em caixa? O Governo Central, por seu turno, que inclui o Banco Central, além de mais de R$ 1 trilhão em caixa, ainda possui mais de US$ 380 bilhões em reservas internacionais, o equivalente a outros R$ 1,5 trilhão em direitos a receber da maior economia do mundo, os EUA, sendo o Governo Central brasileiro, portanto, credor do governo norte-americano.
É importante fixar: as restrições ao gasto no Brasil, um país que emite sua própria moeda e cujo governo é credor internacional, são auto-impostas pela legislação que sempre se pode alterar, como no caso da LDO, que fixa a meta de primário anualmente, ou do teto de gastos que precisará ser flexibilizado sob pena de deixarmos de pagar aposentadorias e paralisarmos completamente a máquina, ou da chamada “regra de ouro” que, a propósito, já foi alterada em 2019 para que o “dinheiro não acabasse” para o Bolsa Família, benefícios aos idosos e outras despesas correntes.
O dinheiro do governo, portanto, não acabou nem acabará, mas as regras fiscais brasileiras, excessivamente rígidas, o impedem de gastar num momento em que a economia, depois de vários anos de crise, ainda não logrou recuperar o nível de renda de 2014. Na realidade, portanto, o orçamento público deve seguir uma lógica diversa do orçamento familiar, pois enquanto nas crises as famílias precisam contrair suas despesas, o governo deve ampliá-las de modo a contrabalançar a retração e o pessimismo que o setor privado difunde pela economia.
As Reformas da Previdência, Administrativa e microeconômicas vão recuperar a confiança dos investidores privados, o crescimento e o emprego?
Na visão liberal, reformas da previdência e administrativas são fundamentais, pois ao apontar para uma redução do gasto público, transmitiriam ao mercado e agentes econômicos relevantes a sensação de solvabilidade e confiança na gestão da dívida pública. Medidas de austeridade seriam, portanto, o instrumento e a solução para restaurar a confiança empresarial e, com isso, estabelecer fundamentos para o crescimento econômico. Essa relação entre austeridade governamental e confiança dos investidores é um mantra constante nos discursos correntes, o que tem levado governos a implementar reformas e políticas contracionistas – acompanhadas de recessão, estagnação ou mesmo deflação – em todo o globo.
Por outro lado, vão se avolumando opiniões contrárias a essa ideia. Economistas estrangeiros de grande influência internacional, e mesmo alguns brasileiros de formação liberal vêm afirmando que essa crença na austeridade como fim em si mesmo está assentada em suposições teórica e empiricamente equivocadas. As evidências e estatísticas disponíveis mostram que os países que seguiram o receituário da austeridade cresceram menos e/ou saíram mais tardiamente de situações de crise econômica.
Ao contrário, países que adotam políticas econômicas que combinam virtuosamente o gasto público (gastos correntes e investimentos) com incentivos corretos, segurança jurídica e perspectiva econômica positiva, conseguem mobilizar complementarmente os investimentos privados no sentido de um crescimento econômico mais elevado e sustentável.
Como se vê acima, apesar do índice de confiança empresarial ter crescido no Brasil desde a deposição de Dilma, da aprovação da EC 95/2016 referente ao teto de gastos, da reforma trabalhista e da eleição de Bolsonaro à Presidência, o fato concreto é que os índices de atividade econômica e da produção industrial permanecem estagnados ou declinantes em todos os casos. Por isso, nada assegura que Reformas da Previdência e Administrativa centradas na redução de direitos, arrocho salarial e em demissões melhorem este quadro. Pelo contrário, devem agravá-lo, ou na melhor das hipóteses instaurar a estagnação com retrocesso social como o novo normal brasileiro.
Cada vez mais proliferam evidências contrárias às hipóteses – ou mitos – liberais. Desmoronam-se seus alicerces teóricos, tornando claras as falácias contidas em suas suposições. Tais erros, no entanto, vão muito além do mundo teórico, pois têm trazido altos custos humanos e sociais cuja reversão se faz urgente.
Bráulio Santiago Cerqueira é auditor fFederal de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional e mestre em economia
José Celso Cardoso Jr. é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. Atualmente exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical.
Fonte: Outras Palavras