Temos um país já extremamente desigual tendo que enfrentar uma pandemia desta magnitude com um sistema público de saúde enfraquecido e com uma estrutura privada que atende apenas um quarto da população. Isso reforça a necessidade de falarmos de desigualdade social. Há quem diga que o vírus é democrático, atingindo a todos igualmente, mas os estudos apontam o contrário: a população negra, pobre e periférica do país é a mais impactada pelo coronavírus tanto do ponto de vista econômico quanto de saúde pública. Os dados também indicam maior taxa de morte entre a população negra.
O Brasil ultrapassou à assustadora marca dos 29 mil mortos (com subnotificação) em decorrência da pandemia de covid-19 no país. A crise sanitária se espalhou e o epicentro da pandemia passou da China para a Itália e demais países europeus, então para os Estados Unidos e, agora, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o epicentro é a América Latina, o que representa um deslocamento de países centrais para países periféricos, ou um redirecionamento ao Sul Global. Mais do que um deslocamento geográfico, há uma diferença na capacidade dos Estados de enfrentamento à pandemia. Além de países historicamente dependentes das economias centrais, muitos, como o Brasil, estão submersos na hegemonia de um neoliberalismo que limita as capacidades do Estado de responder a uma crise sanitária como esta.
Ao olharmos a taxa de mortalidade de países centrais e periféricos, percebemos uma diferença percentual absurda: no Brasil ela é de 6,3% frente aos 3,88% da Alemanha. Vale lembrar que estes são os dados oficiais, sendo que o Ministério da Saúde assume existir subnotificação no caso brasileiro. O que justifica uma diferença tão grande nas taxas de mortalidade brasileira e alemã? A resposta engloba uma série de razões econômicas e sociais, em que a fragilidade institucional de um Estado periférico como o Brasil se traduz em maior índice de mortalidade.
No final de abril, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) publicou o relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, demonstrando como as medidas de austeridade fiscal e a aprovação da Emenda Constitucional 95 reduziram as políticas sociais necessárias para proteger a população mais vulnerável da atual pandemia do novo coronavírus. Com o teto, os recursos empregados na saúde permaneceram em um valor semelhante aos patamares de 2014, enquanto a população brasileira aumentou em 7 milhões de habitantes nesse período. Para se ter uma ideia, os reajustes de planos de saúde divulgados pela agência reguladora, ANS, foram de 7,35% em 2019, em de 10% em 2018, período em que houve redução do número de usuários. Na saúde pública, esses valores não apenas não foram reajustados, como a população atendida aumentou. O desequilíbrio é evidente.
SUS enfraquecido
Graças a isso, temos um país já extremamente desigual tendo que enfrentar uma pandemia desta magnitude com um sistema público de saúde enfraquecido e com uma estrutura privada que atende apenas um quarto da população. Isso reforça a necessidade de falarmos de desigualdade social. Há quem diga que o vírus é democrático, atingindo a todos igualmente, mas os estudos apontam o contrário: a população negra, pobre e periférica do país é a mais impactada pelo coronavírus tanto do ponto de vista econômico quanto de saúde pública. Os dados também indicam maior taxa de morte entre a população negra, apesar da subnotificação e da falta dados sobre raça e domicílio em muitos registros1. O direito de manter-se em isolamento tem se manifestado enquanto privilégio. É na Brasilândia, bairro periférico da cidade de São Paulo, que está o maior índice de mortes por coronavírus. É lá também que está um dos piores índices de informalidade da cidade, com apenas 4,7% de moradores em idade economicamente ativa com emprego formal, segundo dados do Mapa da Desigualdade produzido pela Rede Nossa São Paulo. Estamos falando de 264.918 pessoas, que têm maior probabilidade de morrer de coronavírus que seus vizinhos das regiões centrais.
Estudos mais recentes apontam que as classes mais baixas têm maior probabilidade de precisar de internação caso contraiam o vírus. A razão para isso, sobretudo, é que nesta parte da população há maior presença de doenças crônicas. A precarização da efetivação de direitos sociais como trabalho, saúde, moradia, saneamento básico e fornecimento de água são alguns dos principais motivos para a diferença entre os números dos bairros centrais da cidade de São Paulo e de suas periferias. Mesmo com sucessivos esforços de expansão da rede à custa de contratos de gestão e outras formas de terceirização, a distribuição da oferta de serviços públicos, inclusive os de saúde, ainda obedece a uma lógica racista e classista, deixando pobres e negros acessando direitos pela porta dos fundos. Esse também é o panorama mundial, que explica as diferentes taxas de mortalidades no Brasil e na Alemanha. Em geral, países periféricos sofrem mais com a pandemia que países centrais devido à falta de infraestrutura e dependência econômica. E, dentro dos países periféricos, os riscos também se distribuem desigualmente, fragilizando ainda mais as pessoas na base da pirâmide social, que tem raça, classe e gênero bem definidos.
Congresso Nacional
Mas o avanço do neoliberalismo e sua consolidação como ideologia dominante agravaram as precárias condições de infraestrutura pública para lidar com qualquer situação de emergência como a pandemia do novo coronavírus. E, se do ponto de vista político pode-se defender que as eleições de 2018 representaram um abalo no bloco hegemônico político do país, ainda que relativo, do ponto de vista econômico não há nenhum tipo de abalo da hegemonia à vista. O neoliberalismo tem no Congresso Nacional, com raras exceções, seus maiores aliados. De políticos tradicionais a novatos inflados pelo reacionarismo moral, a defesa da ideologia neoliberal é consenso. No debate público, o mercado se impõe como o grande ator que precisa ser sempre atendido. Quantas vezes não ouvimos sobre as necessidades do mercado, como uma espécie de ser onipresente e onipotente que jamais poderá ser contrariado?
Mas, frente à tragédia da pandemia, quem efetivamente tem respondido à sociedade? Universidades e laboratórios públicos tem se organizado para desenvolver e produzir novas tecnologias de saúde aptas ao enfrentamento da pandemia, com ou sem parceiros privados. Gestores de serviços públicos tem feito esforços para construir hospitais de campanha e reativar leitos fechados em decorrência da diminuição de recursos, também com ou sem participação de parceiros do setor privado. De outro lado, temos uma atuação tímida e descoordenada do setor privado. Organizações representativas de hospitais privados e do empresariado da saúde tem resistido às iniciativas de requisições de leitos pelo SUS, mesmo tendo admitido capacidade ociosa no começo da pandemia. Planos de saúde tem tirado o corpo fora da responsabilidade de atender os inadimplentes que certamente aumentarão, dada a crise econômica que já nos abate. Também têm feito movimentos de diminuir a oferta de planos no mercado e rescindir contratos com dependentes, numa evidente tentativa de reduzir a população sobre a qual tem responsabilidade. Estão fechando a porta para a crise sanitária e aumentando o abismo entre ricos e pobres. A ideologia de que o mercado é o melhor alocador de recursos não encontra respaldo na realidade pandêmica.
Em “O velho está morrendo e o novo não pode nascer”, Nancy Fraser parte dos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia, e, consequentemente, blocos hegemônico e contra-hegemônico para refletir sobre o contexto político e econômico estadunidense em que a hegemonia do neoliberalismo progressista está morrendo, para que seja possível um bloco contra-hegemônico nascer2. Na tentativa de interpretar o cenário brasileiro com base nesse diagnóstico, percebe-se como o neoliberalismo permanece a ideologia hegemônica, o que se reflete na falta de debate sobre os efeitos das políticas neoliberais a longo prazo, de um lado, e na necessidade da construção de um bloco contra-hegemônico capaz de se opor de fato ao neoliberalismo e a sua capilaridade nas estruturas de poder da sociedade brasileira, de outro.
Não há futuro sem o enfrentamento desse debate. Se não reduzirmos a desigualdade social, se não investirmos em saúde, educação, emprego e acesso a serviços essenciais como saneamento básico e moradia, se não fortalecemos os institutos de pesquisa brasileiros para diminuir nossa dependência tecnológica e produtiva, não estaremos preparados para enfrentar nenhuma pandemia. Mais do que isso, se não reconhecermos que o Estado ainda é a autoridade com capacidade de coordenar os esforços e recursos disponíveis, não teremos a menor chance. É momento de aprendermos coletivamente que sem um pacto social forte que defenda o Estado e a coletividade, não conseguiremos barrar tragédias como a pandemia do coronavírus. Mais do que nunca, precisamos reconhecer a hegemonia ideológica do neoliberalismo e suas consequências, para que então, quem sabe, o novo possa nascer.
Carla Egydio é advogada e graduanda em Ciências Sociais. Ana Carolina Navarrete é advogada e militante do direito à saúde, pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário
2 Antes de qualquer aproximação com o caso brasileiro, é necessário ressaltar que Fraser não está diante da versão brasileira de neoliberalismo e de políticas progressistas, onde as ideias chegam um tanto fora do lugar.