Com as atenções ainda voltadas para a realização da Copa do Mundo da Rússia, foi aprovado em 25 de junho, em comissão na câmara, o PL 6299/2002, apresentado pelo senador Blairo Maggi, que modifica e flexibiliza o registro de agrotóxicos no Brasil. Entre seus pontos mais controversos, o projeto tira poder decisório da Anvisa e do Ibama em relação às substâncias, transferindo-o ao Ministério da Agricultura, além de diminuir para dois anos o tempo máximo de registro de um agrotóxico e criar restrições para o comércio de orgânicos.
O texto ainda precisa passar pelo plenário da câmara antes de seguir para o Senado e a sanção presidencial (última instância para que entre em vigor). Não deve ser retomado até as eleições de outubro por seu caráter impopular.
A justificativa que os setores do agronegócio apresentam é de que hoje demoraria de 3 a 8 anos pra liberar um agrotóxico para o uso e comércio, o que consideram muito tempo para a concretização dos negócios no setor. Já os movimentos sociais e organizações da sociedade civil, em geral contrárias a esta posição colocam que a legislação deva ser mais restritiva, uma vez que o uso dos agrotóxicos implica sérios riscos à saúde humana e ao meio ambiente.
De acordo com dados divulgados pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o Brasil é o maior importador de agrotóxicos do planeta e permite o consumo de pelo menos 14 tipos de substâncias que já são proibidas pelo mundo por oferecerem comprovados riscos à saúde humana. O relatório denuncia que o país aceita um limite de agrotóxicos na água 5 mil vezes superior ao aceito na União Europeia – além de uma quantidade de 200 a 400 vezes superior ao permitido no cultivo de soja e feijão, respectivamente.
Ainda de acordo com os dados da Abrasco, do total, 30% dos 504 agrotóxicos de uso permitido no Brasil são vetados na União Europeia. Já de acordo com a geógrafa e pesquisadora Larissa Lombardi, que investiga justamente efeitos de agrotóxicos no Laboratório de Geografia Agrária da FFLCH-USP (apuração da Folha de 1/7/2018, coluna de Claudia Collucci), pelo menos 8 brasileiros são contaminados por dia por essa cultura. E só em 2013 foram consumidos 1 bilhão de litros de veneno pela população, o que representa um mercado crescente de 8 bilhões de reais.
A lista de agrotóxicos proibidos mundo afora e liberados no Brasil é imensa: Tricolfon, Cihexatina, Abamectina, Acefato, Carbofuran, Forato, Fosmete, Lactofen, Parationa Metílica e Thiram. Fora outras substâncias – devidamente proibidas – que continuam a ser usadas por falta de fiscalização. Dos citados, o acefato é o quinto mais vendido no Brasil, mas foi banido na Europa, é considerado neurotóxico pela Anvisa e continua permitido por aqui.
Sobre a possibilidade de a lei se tornar ainda mais permissiva com o comércio e produção de agrotóxicos, bem como alternativas de consumo que fujam de um elitismo mercadológico das atuais “feiras de orgânicos” e vão na direção da segurança alimentar do povo brasileiro, conversamos com os coordenadores da cooperativa Terra e Liberdade, ligada ao MST, que faz distribuição de alimentos orgânicos produzidos pela Reforma Agrária na capital paulista.
Leia a entrevista completa a seguir.
Correio da Cidadania: Como receberam a aprovação do projeto de lei 6299/2002, de autoria do deputado Blairo Maggi, em comissão especial na Câmara, que flexibiliza a regulação dos agrotóxicos no Brasil? Como avaliam os principais pontos do projeto?
Cooperativa Terra e Liberdade: Blairo Maggi é um dos maiores latifundiários do país, conhecido como Rei da Soja e é o atual ministro encarregado do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que nós conhecemos como “Ministério do Agronegócio”, pois só elabora políticas de interesse deste setor, em total oposição ao extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário.
É assim desde 1500 no Brasil: os grandes senhores de terra são os grandes detentores do poder político. No caso do PL 6299/2002, haveria maior concentração de poder nas mãos dessa figura, pois caberia apenas ao MAPA a aprovação de um novo agrotóxico, a partir da criação da Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), órgão interno ao MAPA.
Essa comissão poderá emitir registros temporários para novos agrotóxicos, se julgar adequada a liberação. Obviamente, o termo “temporário” é um adjetivo pouco importante nessa história, pois o que passar dificilmente será restringido. Atualmente, a liberação de um novo agrotóxico deve ser aprovada além do MAPA, por outros dois órgãos: o IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que cuida da saúde humana). Toda a preocupação ambiental e relativa à saúde humana será deixada de lado em prol da ganância do agronegócio.
Além disso, o PL prevê a mudança do nome “agrotóxico” para “fitossanitário”, que faz parte de uma estratégia de marketing, para que as pessoas comam veneno achando que estão ingerindo saúde. Isso é muito preocupante e um grande absurdo, afinal, estamos falando de saúde!
Fora que o uso de agrotóxicos traz várias externalidades econômicas: deterioração de corpos hídricos, perda de reservatórios para abastecimento humano, custos com saúde pública. Assim como na queima do café, a mando dos barões que detinham a primeira república na mão, agora toda a sociedade se mobiliza com seus recursos econômicos e sua saúde para garantir a acumulação dessa classe. Por isso que a reforma agrária não é uma pauta só dos Sem Terra, mas de toda a sociedade brasileira: o agronegócio cresce às custas de projetos de desenvolvimento para o país muito melhores para a população.
Por fim, o PL 6299/2002, do jeito que foi sendo reelaborado, prevê certas restrições para o acesso dos produtos orgânicos ao mercado convencional. Não que não seja importante garantir que o produto é orgânico, mas temos de fortalecer processos como a OCS (Organização de Certificação Social), que envolve diversos produtores e consumidores na certificação. Os selos convencionais de orgânicos, feitos por empresas específicas, são muito caros. É uma forma de barreira ao mercado de orgânicos, reservando ao capital concentrado de oligopólios (nos quais os donos não têm qualquer relação com o trabalho). É uma maneira de tirar da mão do agricultor familiar o que ele faz de melhor: a alimentação de qualidade, orgânica, e jogar no circuito de acumulação de capital.
Por isso somos contra a aprovação do PL 6299, e integramos junto com diversas outras organizações (incluindo muitas que nem possuem uma posição política, mas apenas a preocupação com a saúde humana, como a FIOCRUZ) a campanha #ChegaDeAgrotóxicos. Estamos fazendo muita luta contra esse absurdo, mas é importante que a sociedade como um todo se posicione e se mobilize.
Os dados da atual situação brasileira são alarmantes. De acordo com a Abrasco somos o maior consumidor mundial e pelo menos 30% das substâncias que circulam por aqui são proibidas em outros países, incluindo a China, que tem uma legislação mais permissiva que a europeia. E também de acordo com pesquisadores do Laboratório de Geografia Agrária da FFLCH, pelo menos 8 brasileiros já são contaminados por agrotóxicos por dia. O que vocês imaginam que acontecerá se continuarmos assim?
Correio da Cidadania: Na opinião de vocês, que mudanças deveriam ser feitas na legislação a fim de garantir a segurança e a soberania alimentar do país?
Cooperativa Terra e Liberdade: Precisamos de leis que sejam capazes de trazer as bases necessárias para que a agricultura familiar possa produzir sem venenos. Políticas que permitam democratizar o preço desses alimentos.
Recentemente o governo Temer perdoou dívidas dos grandes proprietários de terra de trilhões de reais; o agronegócio apesar de fornecer 30% dos alimentos que chegam no prato do brasileiro recebe a imensa maioria dos créditos; enquanto a agricultura familiar que produz a maior parte do que comemos tem muitas vezes de acessar os programas de crédito.
É possível planejar uma assistência rural de base agroecológica que contribua para tornar a produção agrícola mais eficiente, sem venenos nem fertilizantes. É claro que são muitos desafios, mas não é verdade quando afirmam que “devemos agradecer que os agrotóxicos existem, pois sem eles não seríamos capazes de alimentar a todos”. O que precisamos é de terra para o agricultor familiar produzir; crédito e assistência para ele criar sua infraestrutura e cadeia de distribuição baseada no comércio justo e solidário para que todos ganhemos com isso.
Correio da Cidadania: Qual o papel de setores populares e ligados aos trabalhadores como um todo, e do MST em particular, em uma conjuntura como esta?
Cooperativa Terra e Liberdade: Vivemos um momento de carência de projeto político de esquerda para o país. Com o golpe, o esgotamento de determinadas forças que compunham o campo progressista e as recentes transformações do capitalismo, se faz necessário entender muito bem o momento que vivemos.
Passamos por diversas modificações nas formas de acumulação do capital e por uma grande crise, entrando numa era em que o capital financeiro se descolou do produtivo de forma muito perigosa no jogo das especulações.
O mundo do trabalho sofre grandes transformações, sendo que as organizações clássicas da classe trabalhadora, os sindicatos, possuem cada vez menos poder de alterar a produção (embora esse poder permaneça grande, como mostra a greve dos caminhoneiros). As categorias estão sendo cada vez mais fragmentadas pelas tecnologias produtivas e as formas de emprego estão transformando as subjetividades. Cada vez mais estamos sendo forçados a nos transformar, cada um de nós, em “empresa de si mesmo”. Isso impõe desafios organizativos que precisam de sério aprofundamento, e só serão respondidos na prática.
As instituições têm se transformado de acordo com as imposições das novas formas de acumulação. O “Estado de bem estar” deixou de ser uma realidade na maioria dos países da Europa. Sua versão periférica era o Estado enquanto árbitro dos conflitos de classe, e essa versão também tem se transformado. Cada vez mais os Estados estão virando enormes corpos jurídicos que garantem a transformação dos países em plataformas de extração de capital financeiro e provedoras da superexploração da força de trabalho. Há um custo alto, inclusive militar.
No olho desse furacão precisamos ser capazes de agir em unidade, pois a financeirização interconecta cada vez mais agronegócio com capital imperialista. As classes dominantes até podem brigar, mas estão financeiramente cada vez mais conectadas. Essa unidade não precisa desconsiderar nossas diferenças e especificidades, mas precisamos ser capazes de dialogar entre nós e esboçar elementos de ação conjunta.
Todas as pautas do nosso campo são importantes, e precisamos tentar traçar pontos que as conectem, para que possamos avançar juntos. Nesse sentido, o MST cumpre um papel importante de conseguir estabelecer diálogo com diferentes campos da esquerda. E isso é fundamental. Se a gente não sentar pra conversar vamos acabar cada vez mais precarizados, sem direitos, sem renda e sem perspectivas.
Correio da Cidadania: O que esperar dessas eleições? As forças políticas mais expressivas, inclusive à esquerda, não estariam todas rendidas ao agronegócio e seu atual modelo?
Cooperativa Terra e Liberdade: A situação não está fácil mesmo. Porém, acreditamos que uma análise do que aconteceu nos últimos anos nos mostra que a solução para nossos problemas (de toda a sociedade) não está na urnas.
Por muito tempo o MST acreditou que a reforma agrária poderia acontecer na “canetada”, elegendo algum político que estivesse ao nosso lado. Mas as condicionantes estruturais que operam no meio político são muito fortes, por isso pautamos hoje a “Reforma Agrária Popular”, aquela que só acontece de fato graças à organização popular e realizando ocupações.
Por isso, independentemente de quem ganhar, fato é que o povo brasileiro precisa se organizar e criar força, se não continuaremos à mercê dessa classe política que não se importa com o povo brasileiro. É claro que, dependendo de quem for eleito, mais ou menos camponeses irão morrer, ou mais ou menos crédito haverá para o agricultor familiar…. Apesar do governo do PT não ter resolvido todos os problemas, tínhamos mais políticas públicas, mais créditos.
Correio da Cidadania: E pensando no dia-a-dia do brasileiro, que alternativas o trabalhador tem para se alimentar com qualidade, tendo em vista que as feiras de orgânicas carregam um estigma de elitização por conta dos altos preços?
Cooperativa Terra e Liberdade: Na realidade a questão dos preços dos orgânicos depende de vários fatores. De fato, determinadas culturas exigem mesmo um grande esforço e são mais afetadas pela sazonalidade, o que as encarece. Contudo, grande parte de tal elitização ocorre pelas relações de mercado estabelecidas, nas quais os atravessadores abocanham grande parte do valor.
Ademais, como a oferta dos alimentos orgânicos ainda é baixa, muitos aproveitam para explorar um nicho de mercado mais “gourmetizado”. A solução está nas experiências de comércio justo, que buscam aproximar produtores de consumidores e criar cadeias curtas de comercialização, o que reduz os custos logísticos.
Certamente há um trabalho nesses elos intermediários de transporte, armazenamento, organização da demanda e da oferta etc. E nós do setor de produção e comercialização sabemos que esse trabalho é bastante pesado! E muitas vezes invisível. Mas quando falamos de atravessadores, estamos falando de grandes conglomerados que detêm o capital. Tais conglomerados compram em larga escala dos produtores, pagam mal os trabalhadores da logística e conseguem vender em larga escala, justamente por deterem grandes quantias de capital de giro, estruturas de armazenamento e escoamento.
Fonte: Correio da Cidadania