Um projeto de lei, que tramita na Câmara, propõe que o lucro contábil do Banco Central (BC) seja direcionado ao tesouro para ações diretas de combate à pandemia do coronavírus. Atualmente, esse caixa do BC tem mais de US$ 340 bilhões e os ganhos acumulados, somente neste ano, ultrapassam R$ 500 bilhões.
O PL 2184/20 pretende que o valor seja destinado mensalmente ao fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e da seguridade social, assim como a ações para conter a crise econômica, com preservação da renda do trabalhador e manutenção das micro e pequenas empresas.
Além disso, o texto prevê financiamento de pesquisas científicas, desenvolvimento da indústria estratégica de defesa nacional e aporte a estados e municípios.
O Brasil de Fato conversou com os economistas André Ramos e Fábio Terra e com o advogado Caio Ferreira, que participaram da construção do Projeto de Lei (ouça a entrevista completa no início da matéria). Eles explicam que, atualmente, o lucro contábil é destinado ao abatimento da dívida pública. Ou seja: vai para o sistema financeiro que têm títulos da dívida.
Caio Ferreira lembra que as primeiras medidas tomadas para enfrentamento da crise foram destinadas à saúde dos bancos. O governo diminuiu o depósito compulsório, parte do dinheiro dos bancos privados que fica no Banco Central como uma trava de prudência. Ele caiu de 25% para 17% do patrimônio das instituições, uma transferência da ordem de um trilhão de reais.
A expectativa era de que a medida impulsionasse a liberação de crédito, o que não aconteceu. Também foi proposta a suspensão das regras da lei de responsabilidade fiscal e houve a aprovação do orçamento de guerra, que suspende a limitação do endividamento.
“Se forem somente essas medidas, o que vai acontecer é que o estado vai aumentar o gasto, só que para financiar esse gasto ele vai tomar dinheiro com os bancos. O que se está construindo no Brasil é um seguro para o sistema financeiro, para ele atravessar a crise. Lá na frente, pode significar um estado que não tem atividade econômica porque todo mundo quebrou, não tem de onde tirar tributação para pagar essa dívida. E qual é o programa dos bancos e desse setor organizado neoliberal? É virar e dizer o seguinte ‘Vocês não pediram emprestado? Agora paguem a conta’. Aí entram Reforma da Previdência, privatizações, alterações constitucionais para tirar direitos sociais, para reduzir a participação do estado da vida do brasileiro e da brasileira.”
“O que se está construindo no Brasil é um seguro para o sistema financeiro, para ele atravessar a crise. Lá na frente, pode significar um estado que não tem atividade econômica porque todo mundo quebrou”.
O economista André Ramos ressalta que as medidas tomadas até agora não garantem a segurança econômica e da saúde da população. Segundo ele, a insuficiência das ações do governo tem causado efeito contrário e prejudicado o isolamento social, principal medida para contenção do vírus, segundo as maiores autoridades em saúde do mundo.
“O objetivo prioritário que temos que ter no Brasil é evitar que pessoas fiquem doentes e mitigar as mortes. As medidas que foram anunciadas até agora não respondem à necessidade das empresas e das famílias. A gente tem visto, cada vez mais, a tendência de as pessoas buscarem descumprir o isolamento social e retomarem suas atividades. Isso vai impulsionar o avanço da pandemia e do número de mortes. A gente tem que garantir que o estado tenha capacidade e que efetue medidas que sejam eficientes, rápidas e contundentes para fazer com que as pessoas de fato consigam se manter em isolamento social e evitar que empresas venham a ter problemas de caixa.”
“A gente tem visto, cada vez mais, a tendência de as pessoas buscarem descumprir o isolamento social e retomarem suas atividades. Isso vai impulsionar o avanço da pandemia e do número de mortes”.
Resistências
Os autores do projeto afirmam que o texto pode gerar resistência no mercado financeiro e vai exigir que paradigmas neoliberais da equipe econômica do governo sejam radicalmente modificados. Ainda assim, o economista Fábio Terra, diz que a receptividade entre os servidores técnicos do Ministério da Economia e do Congresso foi positiva. Além disso, o PL preserva a Lei de Responsabilidade Fiscal.
“Eu acho que talvez o projeto não enfrente resistência no Congresso, porque ele é um projeto sóbrio, realista e técnico. Ele visa nesse momento, permitir que o governo tenha mais recurso próprio, o que é mais barato que o endividamento, para administrar todo o enfrentamento que ele vai ter que fazer da crise. Até o primeiro semestre de 2019, o ganho cambial do Banco Central – isso que nós estamos tratando – era transferido para a conta única do Tesouro Nacional, onde a gente coloca todo o acumulado de recursos que o Tesouro tem. É a poupança do Tesouro. Desde o início das modestas atitudes do governo em relação ao enfrentamento da pandemia, o governo tem usado essa conta única. Portanto, ela é mais barata e é mais fácil de administrar do que recorrer ao endividamento. A gente, com esse projeto, oferece caminhos pelos quais teremos mais flexibilidade usando recursos próprios, ganhos desses ativos, sem vender reservas. Estamos basicamente, como se fala no jargão popular, vivendo de renda, sem nos desfazer dos ativos.”
Desde o início das modestas atitudes do governo em relação ao enfrentamento da pandemia, o governo tem usado essa conta única. Portanto, ela é mais barata e é mais fácil de administrar do que recorrer ao endividamento.
Tramitação
O autor do projeto, deputado Paulo Teixeira (PT-SP), protocolou o texto, que agora precisa ser pautado a partir de uma reunião dos líderes. Se for para a pauta, o PL segue os ritos de uma aprovação de lei ordinária e pode ser aprovado em comissões, sem precisar ir ao plenário.
Para que os recursos sejam usados este ano, a aprovação precisa acontecer antes do final de junho, quando são apurados os lucros do Banco Central. Após essa apuração, se nada mudar, o dinheiro continuará destinado ao pagamento da dívida pública.
Fonte: Brasil de Fato.