Anunciada pelo atual governo, a reformulação de programas sociais de gestões petistas é alvo de embate entre as alas política e econômica da equipe de Jair Bolsonaro.
Após um ano de mandato, a prometida digital do presidente na área social ainda esbarra em indefinições entre ministérios envolvendo, principalmente, a falta de dinheiro.
O ano de 2020 começa sem uma previsão clara de quando as mudanças começarão a valer em marcas dos governos Lula e Dilma Rousseff como Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família e Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego).
Bolsonaro conseguiu no final de 2019 viabilizar a promessa de pagar a 13ª parcela aos beneficiários do Bolsa Família, mas, para isso, teve que remanejar parte da verba que estava prevista para aposentadorias e pensões.
As reformulações desse e de outros programas sociais enfrentam um futuro incerto no governo, que ainda não conseguiu tirá-las do papel e chegou a reduzir algumas coberturas.
Nos três principais projetos, a gestão Bolsonaro também adotou uma estratégia de tentar descaracterizar ações sociais associadas a governos petistas. Em alguns casos, até os nomes devem mudar.
A ideia é reverter a avaliação de que Bolsonaro não tem adotado medidas na área social. O presidente enfrenta baixa popularidade em regiões do Norte e Nordeste, redutos tradicionalmente petistas.
Desde a campanha eleitoral, o argumento usado é que os programas apresentam falhas que precisam ser corrigidas. Os ajustes, no entanto, não avançaram em um ano de governo.
Um exemplo é o Minha Casa Minha Vida. O maior marco da área habitacional deve ganhar nova identidade, diretrizes reformuladas e faixas de renda distintas das existentes hoje.
Atualmente, o grande gargalo do programa é a faixa 1, que tem 90% do valor do imóvel subsidiado pelo governo e é voltado para famílias com renda mensal de até R$ 1.800.
Durante o ano inteiro de 2019, esse segmento sofreu com atrasos nos repasses a construtoras. Como reflexo, o número de imóveis construídos despencou: até novembro, 54,5 mil unidades tinham sido entregues. Em 2018, o volume de casas entregues no faixa 1 foi de 153.273.
Com exceção de 2009 e 2010, quando o programa estava engatinhando, o pior ano em entregas, 2017, teve mais de 100 mil unidades concluídas.
Criado em 2009, o Minha Casa Minha Vida apresentou, portanto, o pior desempenho na cobertura da população mais pobre em oito anos.
Além dos atrasos, a inadimplência elevada é outra marca do segmento voltado a famílias pobres. Até outubro, o índice estava em 34,1% —no mercado, gira em torno de 1,5%, segundo dados do Banco Central. Em 2018 e 2017, encostou em 37%.
Ainda não há consenso sobre o formato do novo programa, apesar de as discussões estarem ocorrendo desde o início do governo Bolsonaro. Inicialmente, a intenção era apresentar a reformulação em julho.
Diante do impasse, o prazo passou para dezembro, mas foi novamente adiado para 2020 —sem data marcada. O formato final ainda gera discussões.
Há divergências entre os Ministérios do Desenvolvimento Regional e da Economia sobre como manter o Minha Casa Minha Vida em pé sem exigir grandes aportes do Orçamento da União.
As soluções negociadas passariam por doação de terrenos de prefeituras e pela adoção de um voucher de construção para quem quiser comprar, construir ou reformar um imóvel —aqui, a faixa de renda familiar seria reduzida para R$ 1.200. Os custos operacionais seriam descontados do valor do voucher —em torno de R$ 60 mil.
Na dúvida sobre o novo formato, o governo cortou à metade o valor para o programa no Orçamento de 2020.
Para José Carlos Martins, presidente da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), não dá nem para pagar a conta neste ano.
Ele também desconfia do discurso do ministro Gustado Canuto (Desenvolvimento Regional), que afirma que os R$ 2,23 bilhões previstos no projeto de lei orçamentária são suficientes para pagar os contratos da faixa 1. “O ministro falou o ano todo [2019] que o pagamento estava em dia neste ano, e não estava”, diz.
Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Regional atribuiu os atrasos nos repasses a construtoras que atuam na faixa 1 ao cenário de restrições orçamentárias enfrentado pelo país durante 2019. Além disso, afirmou que a redução no número de unidades entregues está associada à diminuição do volume de recursos aplicados ao longo dos anos, em trajetória de queda iniciada em 2016.
A pasta disse ainda que sua equipe técnica, bem como as do Ministério da Economia, da Casa Civil e da Caixa Econômica Federal estão dedicadas à reformulação do programa habitacional.
“O objetivo é assegurar que os recursos públicos —Orçamento Geral da União— sejam aplicados de forma mais eficiente para garantir moradia digna às famílias que mais precisam —as de baixa renda— e em consonância com as necessidades habitacionais regionais”, afirmou, na nota.
No Bolsa Família, as discussões para um novo formato ainda são uma dúvida no governo.
Os beneficiários são famílias com renda mensal por pessoa de até R$ 89, ou de até R$ 178 se houver crianças ou adolescentes de até 17 anos. A média do valor recebido por família é de R$ 191,08, segundo os dados de novembro.
O anúncio da reformulação ficou para 2020, apesar de o núcleo político do Palácio do Planalto ter insistido em apresentar essa agenda positiva no fim do ano passado.
O governo deseja ampliar o programa, mas enfrenta dificuldades financeiras. Não há consenso sobre como conseguir ampliar a cobertura e as transferências de renda.
O Orçamento deste ano já está no limite do teto de gastos —medida que impede aumento das despesas públicas acima da inflação. A ampliação teria que ser compensada com corte em outra área.
Sem dinheiro, o Bolsa Família enfrentou um processo de enxugamento no primeiro ano sob Bolsonaro. O governo passou a controlar a entrada de novos beneficiários por falta de orçamento.
A fila de espera —que se forma após 45 dias sem resposta para o pedido— para receber o pagamento supera a marca de 700 mil famílias. Oficialmente, o governo tem se recusado a apresentar dados sobre o enxugamento nas transferências de renda para a população mais pobre.
“Antes de uma reformulação, há vários ajustes a serem feitos. O número de beneficiários e o valor do benefício, por exemplo. O ajuste fiscal precisa ser feito, mas não dessa forma, em cima dos pobres”, diz o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
Com a barreira criada, a cobertura do programa vem recuando mês a mês, após atingir o auge em maio (14,1 milhões de famílias). Em dezembro, foi a menor do ano (13,1 milhões).
Criado em 2004, esse é o carro-chefe dos programas sociais do governo e atende a pessoas extremamente vulneráveis.
Procurado, o Ministério da Cidadania não respondeu sobre a reformulação e enxugamento do programa.
Nesta quarta-feira (8), o projeto de reformulação do Bolsa Família foi apresentado a Bolsonaro pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. A iniciativa foi elaborada pelo Ministério da Cidadania e desde o inicio de dezembro era estudada pela SAJ (Subchefia de Assuntos Jurídicos).
A proposta enviada ao Palácio do Planalto propõe a mudança de nome do programa federal, que passaria a ser chamado “Renda Brasil”. Os diferentes cartões de acesso ao benefício social seriam unificados.
Em posse do presidente, a iniciativa ainda pode passar por alterações. A expectativa é de que ela seja lançada na próxima semana.
Outro projeto com marca petista é o Pronatec, que vem sendo criticado pelo time de Bolsonaro desde o início do governo.
Em funcionamento desde 2011, o objetivo dessa ação é ampliar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica no país.
Mas, em 2019, o programa foi deixado de lado. O orçamento do Pronatec era de R$ 250 milhões. Até meados de dezembro, R$ 33,95 milhões foram empenhados.
Com discurso de que o formato atual do Pronatec não tem o efeito devido no mercado de trabalho, o governo lançou uma seleção de empresas de qualificação profissional para serem remuneradas de acordo com a efetiva empregabilidade dos alunos formados.
Mas isso foi feito em um projeto-piloto de R$ 3,2 milhões para atender 800 pessoas. Enquanto isso, o Pronatec perde espaço no Orçamento público.
Em nota, o MEC diz ter recebido R$ 175 milhões de limite de empenho na ação. Desse total, afirma ter destinado R$ 54 milhões ao Pronatec. “O restante foi remanejado para ações prioritárias da educação básica, como o Programa Nacional do Livro Didático”, afirma o ministério.
Fonte: Folha de São Paulo