A geladeira está encostada na parede da cozinha, mas não funciona. Mesmo se funcionasse, não teria muita serventia: na casa de José Santos Oliveira, 58, há apenas farinha, 300 gramas de arroz cru e pedaços de mamão verde.
O cardápio de José, sua mulher e seus sete filhos foi apenas arroz na última segunda-feira (22). A família enfrenta um flagelo que, segundo declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL), não existe mais no Brasil: a fome.
Dias atrás, o presidente negou que houvesse pessoas no Brasil passando fome: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”.
Horas depois, recuou e disse que “alguns passam fome” e que era inadmissível isso ocorrer em um país com as características naturais do Brasil.
A família de José vive no povoado de Araçá, na zona rural de Tremedal (600 km de Salvador). O município fica a 82 km de Vitória da Conquista, onde Bolsonaro desembarcou na terça-feira (22) para inaugurar um aeroporto.
A Folha visitou quatro das famílias mais pobres dos povoados mais isolados de um dos municípios de menor índice de desenvolvimento humano do país —em relação ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), Tremedal ocupa o 5.408º lugar dentre os 5.570 municípios brasileiros.
As famílias fazem parte do 1,8 milhão de beneficiários do Bolsa Família na Bahia. Em geral, o benefício federal é a única renda que eles têm para colocar comida na mesa. Mas o comum é que o dinheiro acabe com 15 ou 20 dias, resultando em dificuldades todo fim de mês.
Fincada entre o sudoeste da Bahia e o norte de Minas Gerais, Tremedal possui 17 mil habitantes e uma população em tendência de queda, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A queda é resultado da migração, caminho de muitos pais e mães de família diante da falta de trabalho —apenas 5% da população economicamente ativa da cidade possui um emprego formal. Das quatro famílias ouvidas pela reportagem, três têm filhos que moram e trabalham em São Paulo.
Noilza Maria de Jesus tem 45 anos e dez filhos e mora no povoado de Tapiaconga. Da sede do município até lá são cerca de 50 km em estrada de terra, em um caminho com algumas casas isoladas e outros povoados. A única fonte de renda dela são os R$ 320 que recebe do Bolsa Família.
Ela mora em uma casa de adobe e cozinha em fogão a lenha a única refeição do dia: arroz e feijão. Na sua geladeira, que também não funciona, há apenas três tomates parcialmente podres, meia abóbora e um pote de maionese.
Espalhadas pelas prateleiras, há quatro garrafas pet com chás de folhas colhidas no quintal. Em uma garrafa menor, uma garapa com água e rapadura que Noilza dá para a neta de três anos quando a menina sente fome.
“Olha, moço, eu tenho vergonha, mas vou falar pra vocês. Muitas vezes falta [comida], semana passada mesmo faltou”, afirma Noilza.
Como não conseguiu comprar fiado nos armazéns do povoado, a solução foi colher uma mandioca no quintal e servir uma sopa rala aos filhos.
Pequena, a plantação que tem nos fundos da casa é apenas para subsistência. O solo pedregoso, a seca e a falta de assistência, contudo, fazem com que a colheita seja ínfima.
No mesmo povoado, José de Jesus Silva, 56, mora em uma casa simples com sua mulher, Maria Silva, 40. Ambos sobrevivem com R$ 180 do Bolsa Família.
Ele passou mais de duas décadas entre idas e vindas a São Paulo, mas, como não conseguiu um emprego fixo, acabou retornando à Bahia: “A idade vai ficando mais avançada, ninguém quer dar mais trabalho”, afirma.
Em geral, o cardápio da casa é apenas arroz e feijão. Muito raramente tem condições de comprar um frango ou uma calabresa. Carne, já não lembra a última vez que comeu: “Sempre falta [comida], e aí só Deus mesmo. Tem hora que o negócio é cruel.”
No povoado de Lagoa Preta, a 35 km da sede de Tremedal, Dalva Novaes Viana, 47, serve um prato com farinha e um pequeno pedaço de frango para a filha Marizete, 7.
Com ensino fundamental incompleto e sem nunca ter trabalhado formalmente na vida, ela se separou recentemente do marido que, segundo ela, é alcoólatra e a agredia.
Sem emprego e sem condições físicas de trabalhar no campo —sofre com constantes e fortes dores de cabeça—, passou a depender da ajuda dos irmãos para conseguir alimentar a família. Seus dois filhos mais velhos migraram para São Paulo, mas ainda não conseguem mandar dinheiro para ajudá-la.
“A comida aqui é contada. Normalmente é arroz, andu, farinha e às vezes um frango. Carne já faz mais de mês que não como”, afirma Dalva.
Ela diz ter vivido o momento de maior dificuldade quando ainda estava casada e o marido gastava em bebida até o dinheiro do Bolsa Família. “Precisava de minha sogra para conseguir um punhado de arroz ou um ovo.”
Distante 19 km da família de Dalva, José Santos Oliveira, 58, mostra a panela vazia em cima do fogão a lenha. Sua principal reclamação é a falta de trabalho, qualquer que seja.
“Isso aqui é um buraco, não tem nada. Muito raramente aparece uma diária de trabalho na roça”, diz. Os R$ 300 que sua mulher recebe do Bolsa Família, em média, duram 15 dias.
Quando o dinheiro acaba, os filhos seguem para o mato em busca de qualquer coisa que possa servir de comida. Na segunda-feira, conseguiram apenas pedaços de mamão verde, que serão cozidos sob o fogão a lenha.
Muitas vezes, conta José, somente a merenda escolar garante a alimentação diária dos filhos. O cardápio na escola, contudo, não é dos mais nutritivos: “Uma hora é sopa, outra é chá com bolacha e às vezes não tem nada”.
A desnutrição se reflete no corpo magro e na baixa estatura dos filhos. No ano passado, um deles chegou a desmaiar na escola por falta de comida.
Ainda faltavam nove dias para o fim do mês e José dizia torcer por alguma ajuda de vizinhos ou da igreja até chegar agosto e a possibilidade de saque do Bolsa Família.
“Fazer o quê? Se não conseguir nada, a gente mistura a farinha com água e come assim mesmo. Roubar é que eu não vou.”
Fonte: Folha de São Paulo