A premissa liberal fundamentalista afirma que o gasto público real seria a fonte de todos os males nacionais.
José Celso Cardoso Jr*
Tanto a aprovação da Reforma da Previdência quanto as propostas que agora gravitam em torno da Reforma do Estado, representam o golpe final no lento, gradual e sempre inseguro processo histórico de institucionalização da república, da democracia e do desenvolvimento no Brasil. E isso se deve, basicamente, ao fato de que a premissa de todas as reformas está errada dos pontos de vista teórico e histórico [1].
A premissa liberal fundamentalista afirma que o gasto público real seria a fonte de todos os males nacionais. Sob o mantra de que o Estado brasileiro gasta muito e gasta mal se esconde a razão de fundo e o objetivo último de toda e qualquer medida do governo desde o princípio. Apesar do discurso oficial, o fato é que são pífias ou inexistentes as preocupações com o desempenho governamental (setorial ou agregado) ou com a melhoria das condições de vida da população brasileira.
Nesse sentido, é preciso ter claro que o que está em jogo no atual contexto nacional não são, simplesmente, reformas paramétricas a ajustar, ao gosto liberal, a estrutura e o modo de funcionamento do Estado brasileiro em suas relações com os mercados e com imensos segmentos de populações aqui residentes. Trata-se, desde logo, de um amplo conjunto de diretrizes ideológicas e medidas governamentais a transformar radicalmente, estruturalmente, enfim, de maneira paradigmática, a natureza e o funcionamento do Estado em suas relações com a sociedade e com os mercados capitalistas atuantes em território nacional.
Elas se caracterizam por serem, ao mesmo tempo, abrangentes (no sentido de que envolve e afeta praticamente todas as grandes e principais áreas de atuação governamental), profundas (no sentido de que promove modificações paradigmáticas, e não apenas paramétricas, nos modos de funcionar das respectivas áreas) e velozes (no sentido de que vem se processando em ritmo tal que setores oposicionistas e mesmo analistas especializados mal conseguem acompanhar o sentido mais geral das mudanças em curso). Essas três características, por sua vez, apenas se explicam pelo contexto e estado de exceção a que estão submetidas as instituições, os poderes, a grande mídia, a política, a economia e a própria sociedade desde o golpe parlamentar-judicial-midiático implementado no Brasil desde 2016.
Pois para viabilizar tal projeto em sua envergadura, há, portanto, ao menos seis dimensões a serem destacadas para entender melhor o processo em curso de desmonte do Estado brasileiro e da própria CF-1988, a saber:
1. Subalternidade Externa: a ideia de soberania nacional é trocada pela ideia de acordos bilaterais de natureza predominantemente econômica. Esse processo de perda de protagonismo e de autonomia no plano internacional reduz a atuação do Estado brasileiro a um patamar quase que meramente comercial e financeiro, que trata tão somente de identificar e viabilizar negócios rentáveis entre capitais privados nacionais e estrangeiros, sem maiores preocupações com estratégias de internacionalização ou com a geopolítica do entorno estratégico brasileiro, redundando daí grande perda de status internacional.
2. Privatização do Setor Produtivo Estatal: privatizações descabidas, realizadas a preços e condições aviltantes; desnacionalização patrimonial, com perda de soberania nacional e de densidade/densificação produtiva; desarticulação dos investimentos e enfraquecimento do potencial indutor estratégico das estatais junto a segmentos a montante e à jusante das respectivas cadeias produtivas.
3. Privatização de Políticas Públicas Rentáveis nos setores social, ambiental, institucional e internacional: desmonte por dentro de políticas e programas públicos, visando a introdução de atores e interesses privados, sobretudo em áreas rentáveis para a acumulação de capital e a consolidação de mercados lucrativos em áreas tais como: previdência, trabalho, saúde, assistência, educação, esportes, cultura, segurança, meio ambiente, ciência, tecnologia, inovação, comunicações etc.
4. Financeirização da Dívida Pública Federal e da sua gestão pelas autoridades monetária (Bacen) e fiscal (STN): trata-se de processo paulatino e simultâneo, pelo qual se vão consolidando, desde a CF-1988:
• De um lado, normativos constitucionais (tais como as EC 01/1994, EC 10/96, EC 17/97, EC 27/00, EC 56/07, EC 68/11, EC 93/16, EC 95/16, além das PEC 186 – Emergencial, PEC 187 – Pacto Federativo, PEC 188 – Fundos Públicos, todas editadas em novembro de 2019 e ainda em tramitação legislativa), como infraconstitucionais (LRF/2000 e vários dispositivos de controle e punição aplicados quase que anualmente por meio das LDO e LOA) que primam pelo enrijecimento e criminalização do gasto público real, de natureza orçamentária, justamente aquele que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, quanto as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental.
• De outro, tantos outros normativos constitucionais (das quais a EC 95/16 do teto de gastos e a PEC 188/2019 dos fundos públicos são bastante expressivas), bem como infraconstitucionais (por exemplo: Lei 9.249/95, [2] Lei 11.803/08 [3], e Lei 13.506/17, que blinda o sistema financeiro brasileiro da punição criminal sobre os ilícitos financeiros cometidos) [4], pra não falarmos no atual PLP 459/17, que “representa a legalização de esquema financeiro fraudulento semelhante ao que quebrou a Grécia e mais 17 países europeus que emprestaram garantias a esse esquema”, cf. análise da Auditoria Cidadã da Dívida [5]. Todos esses regramentos representam a flexibilização e a blindagem do gasto público financeiro, justamente o oposto do tratamento que vem sendo conferido ao gasto primário real do setor público brasileiro.
5. Assédio Institucional: sequência de atos do Executivo federal contra instâncias e protocolos de validação técnico-científica e de governança de programas de órgãos do Estado brasileiro, demonstrando que o governo atual desconsidera evidências científicas e decisões técnicas em prol do empobrecimento e desqualificação do debate público nunca antes visto no cenário nacional. Alguns exemplos são eloquentes contra universidades e institutos federais, Ibge, BNDES, CNPq, Capes, Finep, Funai, Inpe, Inep, Ipea, Fiocruz, Anvisa, Ancine, Ibama, ICMBIO e até mesmo contra organizações e carreiras do chamado núcleo administrativo ou estratégico de Estado, representado pelo Fonacate (Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado), tais como: Fiscalização Agropecuária, Tributária e das Relações de Trabalho, Arrecadação, Finanças e Controle, Gestão Pública, Comércio Exterior, Segurança Pública, Diplomacia, Advocacia Pública, Defensoria Pública, Regulação, Política Monetária, Inteligência de Estado, Pesquisa Aplicada, Planejamento e Orçamento Federal, Magistratura e o Ministério Público.
6. Reforma Administrativa: amparada ideologicamente por entrevistas de autoridades, artigos de opinião, documentos oficiais e postura agressiva da grande mídia a favor do assunto, consiste em 4 eixos complementares, a saber:
• Redução de estruturas, carreiras e cargos: reduzir o número de carreiras do Executivo das cerca de 310 atuais para 20 ou 30; centralizar e racionalizar a gestão do RH; facilitar a mobilidade entre órgãos.
• Redução de remunerações e do gasto global com pessoal: adiamento por tempo indefinido de concursos; priorização de formas de contratação via terceirização e contratos temporários; rebaixamento dos salários de entrada com alinhamento em relação ao setor privado; revisão das tabelas de progressão no sentido de estendê-las no tempo e impedir que todos os servidores cheguem ao topo remuneratório; possibilidade de redução forçada de jornada com diminuição proporcional de salários.
• Avaliação de desempenho para demissão: nova regulamentação da demissão por insuficiência de desempenho.
• Cerceamento das formas de organização, financiamento e atuação sindical: proibição do desconto em folha da contribuição voluntária sindical e associativa dos servidores (MP 873/19, que não prosperou no Congresso, mas que ensejou a apresentação do PL 3.814/19 no mesmo sentido); exigência de compensação do ponto em caso de ausência motivada por atividade sindical.
Partindo de visão ideologizada (vale dizer: pouco fundamentada seja na história brasileira ou das demais nações, seja nas teorias mais adequadas acerca desse objeto complexo e multidimensional) e negativa (vale dizer: preconceituosa e maledicente) acerca do peso e papel que o Estado deve ocupar e desempenhar em suas relações com os mundos econômico e social no país, os ideólogos e propagandistas dessa agenda ancoram seus dados e argumentos em conclusões infundadas e falaciosas que supõem ser o Estado brasileiro:
• Contrário aos interesses do mercado ou do capitalismo como modo de produção e acumulação dominante nas relações econômicas no país;
• Grande ou inchado em termos de pessoal ocupado e respectivo gasto total;
• Caro ou ineficiente em termos de desempenho institucional;
• Falido em termos de sua capacidade própria de financiamento e endividamento;
• Dependente das reformas da previdência, administrativa e microeconômicas para recuperar a confiança dos investidores privados, o crescimento e o emprego [6].
Não por outra razão, a postura discursiva dos altos escalões do governo federal e o pacote de propostas legislativas em curso atualmente no Brasil, no que tange aos temas do Estado, suas organizações, instituições e servidores públicos concursados possui em comum essa sanha reducionista, (de preços e quantidades), persecutória (contra organizações e pessoas não alinhadas ao mesmo ideário e práxis político-ideológica) e criminalizadora da própria atuação governamental e de parte dos seus servidores (cf. LRF/2000, EC 95/16, e propostas ora em curso).
Em essência, tais propostas carecem de compreensão sistêmica sobre os condicionantes e determinantes do desempenho estatal no campo das políticas públicas, algo que pode ser resumido pelo Quadro 1 no que se refere ao tema da chamada Reforma Administrativa em curso.
Desta maneira, ao invés de trabalhar para elevar e homogeneizar o padrão de vida da população residente no país, o governo Bolsonaro/Guedes age para nivelar por baixo o padrão histórico brasileiro de condições e relações de trabalho, lançando também os trabalhadores do setor público ao patamar e práticas milenares da sociedade escravocrata nacional [7].
(*) Doutor em economia, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, atualmente é presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve esse texto.
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NOTAS
[1] Para a crítica teórica e histórica acerca da fundamentação liberal, ver os artigos da série Mais Brasil ou Austericídio? Disponíveis em http://afipeasindical.org.br/austericidio/
[2] Lei responsável por conferir três benesses tributárias aos proprietários da riqueza financeira: “a) a instituição de isenção integral do IR (alíquota zero) aos dividendos pagos aos acionistas, na contramão do que se faz no resto do mundo; b) a dedução dos juros implícitos sobre capital próprio, como se fossem despesas, com vistas a reduzir a renda tributável; c) a redução do rol de alíquotas do IR, estabelecendo o limite superior em 27,5%, contra a própria legislação pretérita que crescia progressivamente até a faixa dos 40%.” (Delgado, 2018: pg. 111).
[3] Segundo Delgado (2018): “O serviço de dívida pública não é suscetível à verdadeira apreciação pelo Congresso Nacional, fruto de emenda de redação na Constituinte (art. 166, parágrafo 3º, item b, da CF), que explicitamente autoriza essa isenção; e ainda da confecção de uma conta fechada – Sec. do Tesouro/Banco Central, compulsoriamente incluída no Orçamento da União por autorização da lei específica 11.803/2008. São exemplos típicos de uma institucionalidade fiscal-financeira pouco republicana, se comparada aos países do chamado capitalismo organizado, majoritariamente integrantes da OCDE. Essa característica não apenas se mantém no período pós-1988, como também vira uma prática regulamentada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101/2000 – art. 8, parágrafo 2), culminando com a EC 95/2016, que não apenas mantém o “serviço de dívida” como estava (já desregulado), mas amplia para toda a despesa financeira os atributos de irresponsabilidade fiscal e ilimitada criação de despesa por iniciativa do alto staff das finanças públicas – Banco Central e Tesouro Nacional.” (Delgado, 2018: pg. 111-112).
[4] Ainda segundo Delgado (2018): “A linguagem da MP, convertida em lei, é indireta, mas precisa, para atingir esse objetivo: que os bancos e demais instituições financeiras sob jurisdição do Banco Central e as corretoras e demais operadores do mercado de capitais, sob jurisdição de CVM, adiram aos “Termos de Compromisso” e “Acordos de Leniência”, “sem necessidade de confissão de crime”, para obter “Acordos de Leniência Secretos” mediante aplicação de multas escalonadas até o máximo de 300 milhões de reais. Na linguagem dos “mercados”, a regra pode ser lida como de “precificação” do ilícito. Tais acordos, pelo seu caráter secreto, impedem na prática a operação subsequente do MPF na identificação dos ilícitos criminais envolvidos, regra que contrasta flagrantemente com tudo mais que se vê na mídia corporativa sobre o “combate à corrupção”.” (Delgado, 2018: pg. 115).
[5] Se aprovado, o PLP 459/2017 representará: “(1) Venda do Fluxo da Arrecadação Tributária: os tributos que pagamos serão desviados antes de alcançar o orçamento público. Tal escândalo está disfarçado no texto do PLP 459/2017 que diz “cessão de direitos originados de créditos tributários…” Esses “direitos originados” são, na realidade, o dinheiro arrecadado dos tributos que pagamos, que sequer alcançarão os cofres públicos! (2) Pagamentos por fora dos controles orçamentários, mediante o desvio dos tributos que pagamos para investidores privilegiados. Devido à venda do fluxo da arrecadação, parte da arrecadação será destinada por fora dos controles orçamentários, durante o percurso dos recursos pela rede bancária arrecadadora! (3) Geração de dívida pública ilegal, mediante a utilização de nova empresa estatal que está sendo criada em cada ente federado para emitir debêntures, cujo produto da venda é em grande parte destinado ao ente federado, porém, a um custo exorbitante, como comprovado em CPI da PBH ATIVOS S/A em Belo Horizonte: em troca de R$ 200 milhões recebidos por ocasião da venda das debêntures, o Município cedeu fluxo de arrecadação tributária no valor de R$ 880 milhões + IPCA + 1% ao mês, entre outros custos! (4) Comprometimento das finanças públicas com vultosas garantias e indenizações em total desobediência à Lei de Responsabilidade Fiscal! (5) Danos incalculáveis ao orçamento público, tendo em vista que os recursos da arrecadação tributária passarão a ser sequestrados durante o percurso pela rede bancária e, devido ao “sigilo bancário” vigente no país, isso significa completa perda do controle da arrecadação tributária.” Extraído de Maria Lúcia Fattorelli e disponível pelo link: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/denuncia-o-plp-459-2019-pode-quebrar-o-brasil/
[6] Para uma contestação plena relativa a cada uma das falácias listadas acima, ver CERQUEIRA, B. S. e CARDOSO JR., J. C. Reforma Administrativa, Mitos Liberais e o Desmonte do Estado Brasileiro: riscos e desafios ao desenvolvimento nacional. Brasília: RBPO (Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento), vol. 10, n. 2, 2019. Ou ainda os livros: i) Mitos Liberais acerca do Estado Brasileiro e Bases para um Serviço Público de Qualidade. Brasília: Afipea-Sindical, 2019; e ii) Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento: riscos e desafios para as organizações e as políticas públicas federais. Brasília: ARCA (Articulação de Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), 2019.
[7] Para não dizer que não há preocupação alguma com o Estado, suas organizações, funções e servidores, veja-se que tanto na reforma da previdência como nesse conjunto de PEC do fim do Estado e que acabam de soterrar a CF-1988, é conferido tratamento diferencial e privilegiado justamente ao núcleo militar-policial-judicial-repressivo do Estado: “O pacote econômico do governo, elaborado pela equipe do Ministro Paulo Guedes para diminuir os gastos públicos, prevê a criação do estado de emergência fiscal, acionado quando União, Estados ou Municípios estiverem em situação de aperto para pagar suas contas. O governo pode reduzir a jornada e o salário dos servidores por um período determinado, e fica impedido de abrir concursos, dar reajustes, criar cargos ou promover funcionários. Neste caso, porém, não estão incluídos juízes, membros do Ministério Público, militares e pessoal do serviço exterior, como diplomatas. Servidores dessas categorias continuam podendo ser promovidas.” Veja essa matéria completa em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/11/13/pec-emergencial-promocao-juizes-militares.htm