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Revolta da Vacina, 116 anos: diferenças e semelhanças com a onda negacionista atual

Pesquisadores analisam mudanças e permanências entre os contextos do motim de 1904 e da pandemia de covid-19

“Toma a vacina quem quiser. Isso é liberdade”, escreveu o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) em 2 de setembro de 2020. O Brasil registrava uma morte por coronavírus a cada 73 segundos, e cientistas corriam contra o relógio para produzir uma imunização segura e eficaz.

Na mesma postagem, em sua conta no Twitter, o filho do presidente citou a Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro durante a República Velha.

Alvo de chacota por evocar um motim ocorrido há 116 anos, o deputado Bolsonaro reedita um discurso anticientífico e antivacina em plena pandemia de covid-19. A mesma narrativa é ecoada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e parte de seus apoiadores, contrários a qualquer medida de isolamento para prevenção da doença.

No aniversário da Revolta da Vacina, o Brasil de Fato relembra as origens daquele levante popular e descreve os paralelos com a atual pandemia. Pesquisadores ouvidos pela reportagem afirmam que a comparação entre os dois contextos requer cautela.

“Naquela época, a vacina era uma coisa extremamente nova. Mesmo a descoberta dos microrganismos [como causadores de doenças] por [Louis] Pasteur era muito recente”, pondera Flávio Fernando Batista Moutinho, professor adjunto do Departamento de Saúde Coletiva Veterinária e Saúde Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Hoje a ciência tem tudo isso consolidado, e ainda assim há um movimento de negacionismo e revisionismo”, ressalta.

A apropriação da insatisfação popular com as medidas sanitárias para fins políticos é um dos aspectos em que há correlação entre a Revolta da Vacina e a atual pandemia.

Em 1904, setores políticos de oposição, especialmente monarquistas depostos pelo novo regime e militares positivistas, viram uma oportunidade de articular um golpe de Estado – que fracassou.

“A pandemia de covid-19 também está sendo usada politicamente. Uns contra, uns a favor de certas medidas sanitárias, mas cada um puxando para o seu lado, aproveitando certa insatisfação social para seus interesses”, afirma Moutinho.

Ele ressalta, porém, que há uma diferença “absurdamente grande” na condução política da crise sanitária atual.

“O Rodrigues Alves assumiu uma postura de estadista. Preocupado com a nação como um todo, trouxe os cientistas para comandar as ações. A visão do nosso presidente hoje é mais sectária, negacionista da ciência”, pontua.

“São visões diametralmente opostas. Um queria que a ciência funcionasse, para resolver o problema, e o outro vai contra tudo que a ciência está mostrando para defender seus interesses políticos.”


Charge mostra que Oswaldo Cruz era visto como inimigo na época da Revolta da Vacina / Reprodução

Avanços e retrocessos

Passado o trauma da Revolta da Vacina, o país consolidou-se ao longo do século 20 como uma referência internacional em imunização. Oswaldo Cruz, outrora descrito como “vilão”, passou a ser considerado um dos maiores sanitaristas brasileiros.

“A gente aprendeu com aquele episódio e ficou à frente de muitos países, com a imunização gratuita, por exemplo. Mas, hoje, vivemos um momento de retrocessos”, pontua Moutinho, que integra o Departamento de Vigilância Sanitária e Controle de Zoonoses da Fundação Municipal de Saúde de Niterói (RJ).

O sarampo, por exemplo, estava erradicado no país até 2016. Só nos primeiros sete meses de 2020, foram 7 mil casos registrados e cinco mortes de crianças, e parte da responsabilidade se atribui aos movimentos contrários à vacinação.

“Dez anos atrás, não imaginávamos que estaríamos debatendo essas questões, que já pareciam superadas”, acrescenta o pesquisador.

“Elas podem ser debatidas, claro, desde que não interfira na saúde coletiva. Porque o interesse coletivo se sobrepõe ao interesse individual. Ao não se vacinar, você não prejudica só a si, porque ninguém vive numa bolha.”

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 2 e 3 milhões de mortes são evitadas por ano graças à imunização. Por isso, considera o “medo da vacina” uma das dez maiores ameaças à saúde global.

Embora tenha repercussões na família do presidente da República, o movimento antivacina não é um fenômeno local e está em crescimento desde a virada do século.

O “respaldo científico” é, basicamente, um artigo do médico britânico Andrew Wakefield na revista The Lancet, em 1998, que relacionava a vacina tríplice viral ao autismo. A publicação retirou o estudo de seus arquivos quando se comprovou uma fraude metodológica, que incluía adulteração de dados dos pacientes.

A legislação brasileira permite que a vacinação seja obrigatória em casos excepcionais. Apesar das declarações públicas recentes, o próprio presidente Jair Bolsonaro sancionou um projeto de lei que permite a vacinação obrigatória contra a covid-19.

Da mesma maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece ser “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”

João Malaia Santos, professor de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), conta que, entre 1994 e 2010, quando era professor de História no ensino fundamental e médio, as aulas sobre a Revolta da Vacina eram desafiadoras.

“Os alunos perguntavam: ‘Como alguém pode se revoltar a ponto de quebrar a cidade inteira para não ser vacinado?’”, lembra. Hoje, os professores não têm a mesma dificuldade.

“As pessoas estão em contato com todo tipo de argumento contra a vacinação: porque é ‘chinesa’, porque ‘querem introduzir um chip’, ou ‘inserir doença na gente”, conta.

“Se olharmos para 1904, os argumentos não eram tão diferentes. E as pessoas compram essa narrativa porque é conveniente e traz algum conforto. Talvez elas queiram ouvir que [a covid-19] é uma ‘gripezinha’, que a cloroquina funciona, que não precisa de vacina nem é necessário ficar em casa, embora a ciência demonstre o contrário”, analisa o historiador.

Motivações

Apesar do nome eternizado nos livros de História, Moutinho lembra que a causa do motim não foi apenas a vacina obrigatória, mas “um acúmulo de pressões sociais, principalmente sobre a camada mais pobre.”

Capital e maior cidade do país à época, o Rio de Janeiro vivia um drástico aumento populacional, que se refletia nas condições de moradia e saúde. A proliferação de doenças dificultava a atração de mão de obra estrangeira, após a abolição da escravatura, e os problemas de infraestrutura da área portuária eram um entrave ao escoamento do café.

A soma desses fatores motivou uma intensa reorganização urbana no centro, capitaneada pelo prefeito Pereira Passos, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves. Inspirado na arquitetura neoclássica de Paris e Buenos Aires, ele autorizou a demolição de cortiços sem indenização aos moradores, que foram “empurrados” para os morros e regiões periféricas da cidade.

Nos subúrbios, as condições sanitárias se mantinham precárias, e coube ao jovem médico Oswaldo Cruz assumir a Diretoria Geral de Saúde  Pública (DGSP) com a missão de enfrentar três epidemias. Para a varíola, havia vacina; para a peste bubônica, transmitida por ratos, a receita era aprimorar a higiene e caçar os roedores; a febre amarela, por fim, seria enfrentada com fumaça de enxofre nas casas e vias públicas, para matar os mosquitos.

Moutinho afirma que a aplicação das medidas sanitárias, em 1904, era tão arbitrária quanto havia sido a reorganização urbana do centro. “Precisamos lembrar que os tempos eram outros e aquele nível de arbitrariedade era comum na época. Não querendo justificar, mas explicando”, ressalta.

Desigualdade

Malaia analisa que a população pobre tinha razões para estar insatisfeita. “Imagine um trabalhador que morava no centro e teve que mudar para o subúrbio, longe do trabalho, chegar em casa e ver os agentes querendo entrar, vacinar todo mundo, colocar fumaça, sem explicar direito o que estava acontecendo”, descreve.

“E a vacina, na época, não era uma agulhinha. Ela deixava um, às vezes até três buracos no braço.”

O abismo entre classes sociais, que se reflete nos números de mortos e contaminados por covid-19, também era um fator preponderante na Revolta da Vacina.

“Exigia-se vacina para trabalhar, por exemplo, e muitas vezes os atestados de vacina eram cobrados”, observa Moutinho, que vê diferença na forma como a classe empresarial encaravam o avanço das epidemias há 116 anos.

“O empresário, na época, queria muito que os seus funcionários se prevenissem. Eles estavam preocupados com a questão econômica, com a preservação da sua mão de obra. Porque não era nada mecanizado”, analisa.

Na pandemia de covid-19, representantes da indústria e do comércio foram criticados por pressionarem o Estado contra as medidas de isolamento e por descumprirem normas sanitárias, colocando trabalhadores em risco.

Malaia ressalta que circulavam dezenas de jornais no Rio de Janeiro no início do século 20, e que essa efervescência contribuiu para a Revolta da Vacina.

“Havia uma imprensa operária, negra, mas os principais jornais dialogavam com as classes mais altas, como a revista Tagarela e o Correio da Manhã, que faziam uma campanha contra o Oswaldo Cruz. Eles diziam que a fumacinha [contra a febre amarela] sufocava as pessoas, que o povo não conseguia mais respirar”, exemplifica.

“Muita gente era analfabeta, mas as pessoas viam as capas expostas nas bancas, viam as charges, comentavam. As informações – e a desinformação – circulavam muito.”

Uma das charges sugeria que o objetivo da vacinação era permitir “que os medicozinhos vejam os braços das pequenas”, em referência às pacientes. Outras tantas ridicularizavam e humilhavam Oswaldo Cruz, que passou a ser visto como inimigo.


Charge insinua que o objetivo da campanha de vacinação era permitir que os profissionais de saúde vissem os braços das pacientes / Reprodução / Revista Tagarela

Em paralelo, políticos da oposição, como os militares positivistas Barbosa Lima e Lauro Sodré, incitavam a população a se armar contra os trabalhadores da saúde pública. Logo, começaram a circular notícias de profissionais agredidos e até apedrejados no centro da cidade.

Quem pagou o preço

A recusa da população a aderir às medidas sanitárias levou o governo a enrijecer as normas, permitindo que os agentes entrassem nas casas mesmo sem a anuência dos moradores.

O plano de aplicação da vacina obrigatória contra a varíola, publicado no jornal A Notícia em 9 de novembro, é considerado o estopim da rebelião.

Bondes foram atacados, virados de ponta-cabeça e queimados pelos manifestantes, que também romperam fiações elétricas, levantaram barricadas, derrubaram árvores, apedrejaram carros.

Após uma semana de manifestações e repressão, a obrigatoriedade da vacinação foi retirada. Porém, o custo da “vitória” recaiu sobre a parcela mais pobre.

Trinta pessoas morreram e 110 ficaram feridas. Cerca de 945 manifestantes foram presos na Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara, e outros 461 foram deportados para o Acre.

“Muita gente hoje cita a Revolta da Vacina para mostrar ‘como o povo foi forte’, foi ‘senhor do seu destino’ em 1904”, analisa Malaia. “Mas, quando começaram os distúrbios, o Sílvio Barbosa Lima e o Lauro Sodré saíram de cena. Na única foto que a gente tem das pessoas presas se vê que, basicamente, são todas negras.”

 

Fonte: Brasil de Fato

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