A crise gerada pelo coronavírus deverá deixar como herança problemas econômicos, políticos e sociais para o Brasil que não ficarão limitados a 2020. Aumento da desigualdade, interrupção da retomada dos investimentos e perda de capital político do governo são algumas das consequências apontadas por especialistas ouvidos pela Folha.
A avaliação predominante é que a de que as medidas anunciadas pelo governo até o momento são importantes, mas não serão suficientes para evitar quebra de empresas, aumento do desemprego e uma recuperação rápida da economia assim que as medidas de restrição de circulação forem levantadas.
Outra questão que já vem sendo discutida é a manutenção da atual política econômica focada no aumento da atuação do setor privado em detrimento da participação da administração pública e do papel do Estado na economia.
“Não tem como, seja o mundo, seja o Brasil, sair dessa crise, dessa situação dramática, da forma que entrou”, afirma Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.
“Temos problema profundos que vão fazer com que a nossa crise seja de impacto grande, econômico e social. Nossa concentração de renda vai ficar ainda mais gritante. O enfrentamento do vírus pressupõe home office, não usar transporte público, estar sempre se higienizando, manter distância, em um país que concentra milhares de pessoas em favelas e tem milhões de trabalhadores informais.”
A economista Alessandra Ribeiro, da consultoria Tendências, afirma que a crise do coronavírus alcança o país em um momento em que a economia brasileira e a situação de muitas empresas e famílias está bastante fragilizada. A Tendências projeta retração do PIB (Produto Interno Bruto) em 2020 e avalia que a maior parte do impacto econômico irá se dar neste ano.
Ela não descarta, no entanto, alguns efeitos um pouco mais duradouros, mesmo que o governo esteja anunciando várias medidas para tentar prover liquidez para empresas e pessoas físicas. “Não dá para descartar que algumas empresas não sobrevivam”, diz.
José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, afirma que os efeitos da paralisação das atividades no Brasil vai derrubar o PIB neste ano e, na melhor das hipóteses, possibilitará um resultado próximo de zero em 2021. Segundo ele, a taxa de desemprego deve voltar para algo como 14%, muito parecido com o que era em 2017, principalmente se a recessão entrar no ano que vem.
“Essa piora no mercado de trabalho, adia consumo, reduz oferta. Como a demanda externa não vai ajudar, não tem como crescer, porque o governo não vai gastar. Todas as medidas que estão sendo tomada podem, na melhor das hipóteses, ajudar a não piorar, como dar crédito para capital de giro, adiamento de recolhimento de imposto. Mas são coisas temporárias”, afirma.
O professor Armando Castelar Pinheiro, coordenador da área de Economia Aplicada do FGV-IBRE, afirma que o cenário continua sendo de retomada, passado o período mais grave de quarentena, mas diz que o Brasil vai sair desse processo pior do que entrou.
“O que ia puxar o crescimento em 2020 era o crédito. Já tínhamos observado em 2019 expansão importante do crédito para as famílias, e a expectativa é que com juros mais baixos. Acho que isso ficou muito complicado. O crédito ia ser a grande alavanca, em especial o crédito às famílias, e isso vai perder força.”
Alessandra Ribeiro, da Tendências, também afirma que a retomada do crescimento, que nos últimos anos foi puxado pelo consumo, sofrerá por conta da perda de poder aquisitivo da população, do aumento do desemprego e da elevação do endividamento.
Segundo ela, como boa parte da população ocupada é informal, mesmo que o governo lide com a situação dando uma renda mensal, quando a atividade econômica se recuperar, levará mais tempo para essas famílias recomporem seu poder de consumo.
“Além disso, elas podem se endividar para tentar lidar com essa situação e, na saída da crise, além do rendimento mais baixo, podem sair também um pouco mais endividadas. Até recompor sua renda, isso pode limitar o consumo dessas famílias.”
O economista-chefe do Banco Fator afirma que o nível de incerteza em relação à crise sanitária não parou de crescer, o que impede que pessoas e empresas tomem decisões de consumo e investimento, e que isso não irá mudar de uma hora para outra por conta do fim de medidas de restrição de circulação.
“As coisas aqui vão piorar no segundo e terceiro trimestre, se considerar a defasagem em relação ao que ocorre na China. É um grau de incerteza que atrapalha fazer qualquer coisa e não tem como você virar a economia em um trimestre. Eu quero ver quem é que vai investir em um cenário desses. Olhando para o médio prazo, você vai ter mais um rodada de decisões empresariais de investimentos sendo empurradas com a barriga. Ninguém investe com o consumo caindo”, diz José Francisco de Lima Gonçalves.
Kátia Maia, da Oxfam Brasil, também afirma que a população de renda mais baixa sairá da crise com menos recursos, mais endividada e tendo deixado para trás oportunidades de emprego e educação que não estarão necessariamente garantidos no futuro.
“Não é uma coisa que você suspende tudo e depois volta de onde parou. Vai voltar em outros contexto econômico, social e político. Para a classe média, várias ferramentas podem funcionar, como aula digital no celular, no computador. Para quem está na periferia, não. As soluções não podem ser as mesmas para todo mundo. É preciso levar em conta um ponto de partida desigual. Senão, lá na frente, o resultado que você tem continua sendo o de reforçar a desigualdade de oportunidade.”
Para ela, será necessário rever um modelo de ajuste fiscal que reduziu políticas de assistência social e recursos para educação e saúde. Em relação a esse último ponto, ela afirma que o SUS (Sistema Único de Saúde), que atende cerca de 75% da população brasileira, corre o risco de colapsar por conta da crise atual e ficará sobrecarregado posteriormente por conta dos milhares de procedimentos que estão sendo adiados.
“São três áreas que precisam estar acima do ajuste fiscal. O ajuste é importante, mas tem outros caminhos para fazer”, afirma. “As ações do governo podem ser mais amplas, mas não serão suficientes no longo prazo. É importante combinar ações emergenciais com uma visão de mais longo prazo. Precisamos retomar outras agendas que não tiveram prioridade do governo. É fundamental que faça uma intervenção nessa concentração de riqueza que está no topo.”
Castelar, da FGV, afirma que o mais importante nas próximas seis semanas é adotar medidas para evitar o aumento do desemprego e a quebra de empresas, limitando os prejuízos para que seja possível retomar o ritmo de crescimento mais à frente, mas diz que não é hora para o governo aumentar despesas não relacionadas com a área de saúde.
“O gasto agora é para atender pessoas de baixa renda e pequenas empresas com problemas de crédito. Não precisa mudar teto de gastos, mudar uma coisa de longo prazo por um problema de curto prazo sem necessidade. A equipe econômica não tem de jogar dinheiro na economia nesta hora. Vai ficar sem munição mais para a frente. A hora de gastar vai ser quando a coisa ficar sob controle e as pessoas saírem novamente para gastar. Agora, é inútil.”
Outro ponto destacado por Castelar é a deterioração do ambiente político e o risco que isso traz para a agenda de reformas do Ministério da Economia e para os investimentos. Ele afirma que o comportamento do governo em relação à epidemia afetou a popularidade do presidente e que os conflitos entre Executivo e Congresso aumentaram.
“A aprovação de reformas fica mais complicada e a incerteza política tende a aumentar nos dois últimos anos do mandato do presidente Bolsonaro”, afirma. “O empresário que investe vai ficar com medo de protesto de rua no ano que vem contra o governo, as pessoas pedirem impeachment. A reação política está atrapalhando o andamento das reformas e criando um ambiente de incertezas que pode ter consequência no ano que vem em termos de investimento. Mas ainda dá tempo de melhorar e tentar resolver isso.”
Alessandra Ribeiro, da Tendências, afirma que o cenário político piorou e que a popularidade baixa do governo dificulta uma articulação que já estava difícil com o Congresso. Para ela, na melhor das hipóteses, pode ser que se aprove a PEC Emergencial e talvez algo relativo à reforma administrativa neste ano.
Ela diz que também haverá impactos sobre a produtividade de empresas e trabalhadores, por conta de fatores como adiamento de investimentos, manutenção das pessoas por mais tempo fora do mercado de trabalho e falta de recursos públicos e privados para pesquisa, desenvolvimento e educação.
A diretora da Oxfam Brasil afirma o vazio de liderança política tornará a saída de crise mais difícil para o país.
“Temos uma combinação de uma crise terrível de saúde pública, com um desgoverno dessa magnitude, de inabilidade política e econômica. Precisamos de uma liderança política série para reconstruir o país depois que essa crise passar. É uma reconstrução que vai ser necessária. Vai ficar tão visível o estado da desigualdade. Toda essa tensão que existe em nosso país tende a aumentar.”